Meio bilhão de pessoas para alimentar
A Ásia concentra 515 milhões das 821 milhões de pessoas famintas do mundo em 2017, segundo a publicação “O Estado de Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo”, da Organização para a Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (FAO), lançada neste ano. Esse meio bilhão de pessoas não é considerado nos cálculos da evolução da demanda aparente de alimentos, elaborados pelos maiores países exportadores de produtos agropecuários, porque obviamente não possuem recursos suficientes para comprar comida.
Dada a sua proximidade com a Ásia, e o fato do continente ser o seu maior comprador de comida, o Departamento de Agricultura da Austrália, por exemplo, em publicação de 2014 (“Long term food demand in Asia: implications for Australian agriculture”), estimava em 123% o aumento da demanda asiática até 2050. Idem os Estados Unidos (no estudo “USDA Agricultural Projections to 2026”, de fevereiro de 2017, seus focos são a Índia e a China, cujas populações somadas passam de 2,5 bilhões de pessoas, total equivalente a oito vezes a população norte-americana). E em publicação de junho deste ano (“International Food Security Assessment, 2018-2028”), do Serviço de Pesquisa Econômica do Departamento de Agricultura, na qual analisa a situação mundial de insegurança alimentar, sua estimativa para a evolução da Ásia é muito positiva. O cálculo projeta que cairá dos atuais 395,8 milhões para 123,8 milhões de pessoas nessa condição em 2028, sendo a maior diferença na Índia, de 186 milhões para 19 milhões. Curiosamente, a China não é citada, mas sabe-se que ela pretende tirar da pobreza nos próximos anos a parcela de 128 milhões de pessoas (equivalente à população do Japão) que ainda restam nessa condição, incorporando-as ao mercado consumidor.
Todas essas pessoas passarão a consumir mais comida, deixando de ser demanda reprimida para ser demanda efetiva. Traduzindo: as exportações de carnes, pescado, grãos, lácteos e frutas para a Ásia aumentarão ainda mais daqui para frente. Um volume adicional ainda por calcular, novos mercados ainda por abrir e uma enorme pressão sobre o mercado e o cartel mundial de alimentos.
Além dessa população faminta que passará a ser contabilizada como consumidora, há uma outra, que consome muito mais calorias do que a média considerada normal, e que consequentemente demanda muito mais alimentos do que o cálculo per capita padrão. São os 1,9 bilhão de pessoas com sobrepeso e 672 milhões obesas, parcela da população mundial que só aumenta desde os anos 1980. A Ásia possui pouca gente (em termos relativos) nessa condição, se comparada com os Estados Unidos (38,2% dos adultos), México (28,9%), países árabes (mais de 30%) e europeus (acima de 20%): o Vietnã tem 2%; Japão, Coréia do Sul e Índia 4%, em média; e a China 6% (dados de 2016 da Organização Mundial de Saúde, citados na publicação da FAO referida anteriormente).
Imagine-se o impacto na produção agropecuária mundial se a Ásia seguir essa lógica global de comer muito mais. Ou apenas a China, com seus 1,4 bilhão de habitantes, que possuem poder aquisitivo cada vez maior, atingir o nível de consumo per capita de alimentos dos Estados Unidos. Quantas dezenas de milhões de toneladas a mais necessitará? E já que a imaginação é livre, não custa especular também sobre um outro aspecto que considero integrar a imensa demanda reprimida de alimentos na Ásia: a sua população “miúda”, com peso e altura médios muito abaixo dos padrões brasileiro, europeu e norte-americano, está mudando de patamar. As novas gerações são mais altas e pesadas, graças ao maior consumo de alimentos proteicos – houve alteração significativa na alimentação na China, por exemplo, de 1980 para cá, com redução do consumo per capita de grãos e aumento do de carnes, ovos, lácteos, pescados e frutas.
A FAO trabalha para acabar com a fome no mundo em 2030, meta nº 2 dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas. Certamente, ela trabalha com todas as variáveis para resolver o problema maior da Humanidade, mas a minha dúvida se mantém, porque não vejo em nenhum estudo qualquer referência às demandas reprimidas de alimentos citadas neste post. Como demonstrado, são enormes e por isso elas deverão impactar muito a produção e o comércio mundial de alimentos, elevando os preços e, portanto, reduzindo o acesso e aumentando a quantidade de famintos – mas, aparentemente, não são consideradas nos cálculos dos especialistas.
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