O húngaro que encanta

"Pisti", como o chamam, foi meu maior presente de 2024
Sábado István (à direita, na foto) faz aniversário. Eu também. Eu 67, ele quase nada a mais

1 – Ontem a jornalista Mona Dorf promoveu uma entrevista com István Wessel numa instituição judaica daqui de São Paulo. Com casa cheia, ouvimos o depoimento de um homem que encanta sem fazer força e que seduz pela tração poderosa da história vivida. Hoje sou amigo dele. Quando o recebi num debate sobre o meu livro "O Halo Âmbar", dele ouvi um depoimento candente e intenso. Concluí então que escrevera 520 páginas, na verdade, pensando em ter um – bastava um – leitor como ele. "Pisti", como o chamam, foi meu maior presente de 2024.

2 – István é filho do Danúbio, nasceu em Budapeste. O pai sobreviveu ao campo de Mauthausen. No ocaso da Guerra, a mãe queria que saíssem da Europa e do frio. A Austrália era uma alternativa, visto que lá tinham família. Mas quis a burocracia consular que o destino fosse o Brasil. Sorte nossa. Segundo o jornalista Dias Lopes, István foi o melhor presente que a Hungria deu ao Brasil. Para mim, ele e Paulo Rónai – pai de Cora Rónai – foram as dádivas com que a Mitteleuropa nos regalou. No Campo, o pai levava uma faca, o instrumento de trabalho.

3 – Com ela, dispunha-se a fatiar os pães entre os detentos. Quem tinha a faca, administrava justiça. Como retribuição, só pedia as migalhas. Ao cortar dezenas de pães, haveria do que se manter. Um dia, carregando um bebê num moisés, o pequeno "Pisti" com 10 anos, e a esposa, chegaram a uma casa no meio do milharal seco de dezembro. Não havia fôlego para seguir viagem. Estava frio. Torciam para que a casinha fosse acolhedora e austríaca. Se fosse húngara, estariam em situação difícil. Deram sorte. Era 1956. Budapeste fora esmagada pelos tanques russos.

4 – No novo país, a família correu atrás do seu negócio. Açougueiros de gerações, queriam estar nas vizinhanças da concorrência porque isso significava fregueses. Os bons se destacariam. Em três anos, um carro zero já reluzia na garagem. Nada ruim para quem chegara com uma mochila – "e nela não havia ouro". István se casa. Vem o primeiro filho. Ele resolve fazer um curso de cinema sob pretexto de documentar o engatinhar do bebê. Mas lá, algo muda. Lá vira amigo do publicitário Julio Ribeiro, um desses homem de gênio que quem dele privou não se esquece.

5 – No novo capítulo profissional, a palavra de ordem foi trabalhar o "branding". Facas Wessel, tábuas de carne, temperos, receitinhas e utensílios – desde que o cliente não perdesse de vista que era ali que acharia a melhor carne, o serviço mais customizado. Por que customizado? Retórica? Não. A clientela se sofisticou e começou a aparecer clientes alemães e franceses do ABC, na cola do desembarque das montadoras no Brasil, nos anos JK. István, o dínamo, era incansável. Fez compêndios quadrilingües para cativar os europeus que queriam cortes como os de casa.

6 – O velho Wessel se apaixonou pelo novo país. Voltou à Hungria... mas só até a fronteira. Da Áustria, cuspiu com estrépito no solo magiar. Disse o embaixador Carlos Alberto Asfora, com quem viajou. "Simpaticíssimo. Conheci-o e à sua esposa durante um cruzeiro de uma semana no ´Mermoz` pelos fiordes noruegueses, até o Spitzberg e a calota polar. Faz 40 anos, mas lembro vividamente do seu ardoroso amor pelo Brasil. Sempre falava com entusiasmo da natureza gentil dos brasileiros e de como ninguém o tratava diferente por ser judeu, que era o extremo oposto do que tinha vivido na Hungria. Um casal adorável."

7 – István, com o arrazoado de Ribeiro na cabeça, foi à luta. Nunca ficou órfão de assessoria de imprensa. Apareceu nos espaços mais prestigiosos das revistas e jornais. Não contente, passou a gravar um boletim sobre comida e bebida no espaço de Mariângela Bordon, na rádio Eldorado. Lembro bem. Eu ia à Pires da Mota, na Aclimação, gravar o Merken Notícias no estúdio onde o Jô tinha um programa de jazz. Depois de anos, ele foi fazer a mesma coisa na Bandeirantes. Como manter-se tão jovem e vibrante? "Conhecendo os amigos dos meus filhos. Fazem planos e olham para o futuro."

8 – O contraponto a isso, é a mania dos velhos de falar de doença. Quando o assunto ficava pesado, era Júlio Ribeiro que bradava: "Chega desse assunto chato, vamos virar o disco, vamos falar de assalto." Os Wessel levaram o carpaccio fatiado e prontinho à mesa brasileira. Com a faca na mão, István dá show. Não faz muito tempo, um vídeo dele tinha sido visualizado por 3 milhões de pessoas no mundo todo. Reconciliado com o país de origem, voltou lá muitas vezes. Tem vasto acervo fotográfico da casa onde nasceu em Budapeste. Mas não foi lá que o Judaísmo aflorou.

9 – O pai nunca botou os pés numa sinagoga. Sob o olhar enviesado da avó, nem István nem o irmão foram circuncidados e ele mesmo levou em torno do pescoço por uns bons anos um símbolo que enlaçava uma estrela de David e uma Cruz. Até que aos 22 anos, aproveitando que estava na Turquia, István foi a Israel para visitar um amigo. Quando embarcou num EL Al e viu as aeromoças falando "ivrit" contemporâneo, teve uma epifania. Era tudo – brasileiro, húngaro, cidadão do mundo, mas também judeu. A partir daí se voltou para as causas comunitárias – tanto quanto para o charuto, churrasco e o vinho.

10 – Sábado István faz aniversário. Eu também. Eu 67, ele quase nada a mais. Viajante inveterado, acha tempo para tudo. Chega sempre elegante, é simples no trato e magnetiza o interlocutor pelo dom de fazê-lo se sentir importante. Ouvi-lo significa muito. É aprender sobre a história de São Paulo, é refletir sobre o destino. É, sobretudo, ver como uma cabeça bem construída responde com galhardia à adversidade e como perscruta os ventos – até para anunciá-los. Obrigado a ele a Mona pelo convite, que atendi com alegria. Minha noite saiu enriquecida. Espero que possamos nos rever em breve.

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Segunda, 31 Março 2025

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