Nos passos de Fiszel Czeresnia e outras estórias

Reproduzo, a seguir, a entrevista que concedi ao jornalista Rolf Formiga Schulte em razão do lançamento de Nos passos de Fiszel Czeresnia e outras estórias (foto), meu mais novo livro.  Fernando Dourado, me permita uma curiosidade. Por que "estórias"...

Reproduzo, a seguir, a entrevista que concedi ao jornalista Rolf Formiga Schulte em razão do lançamento de Nos passos de Fiszel Czeresnia e outras estórias (foto), meu mais novo livro. 

Fernando Dourado, me permita uma curiosidade. Por que "estórias" e não "histórias"? Gosto pela polêmica ou falha de revisão?
Nem uma coisa nem outra. O escritor Paulo Gustavo, da Academia Pernambucana de Letras, já me advertira desde 1999 que "histórias" era a forma consagrada. Mas acatei a sugestão de meu agente para quem é cara a distinção entre "story" de "history". Então, me valendo da tolerância que faculta o dicionário Houaiss, liberei "estórias". Apesar de eixos narrativos independentes, o conjunto das estórias poderá sim, no final, perfazer uma história. Não sou de engessamentos.   

Muito bem. Agora como explicas a escolha de um nome polonês quase impronunciável para o título? 
Fiszel Czeresnia [se pronuncia Fichel Tcheresnia] foi um grande homem e bom amigo. Nós nos conhecemos em 1978, quando me apaixonei por sua filha. Entre idas e vindas do coração, lá esteve ele, firmemente ancorado na convicção que eu já vira estampada no carro que ele dirigia em São Paulo: "Sou brasileiro, judeu e sionista". Ele conseguiu ser os três sem trair ninguém. Amou em igual medida o Brasil e Israel. Faleceu ano passado, mas seu legado lhe sobreviverá. 

Como ele entra no livro? A história de vida de Fiszel tem alguma coisa a ver com tua velha ligação com Israel?
Sim e não. Não porque eu já trabalhara num kibutz quase três anos antes de vir a conhecê-lo. Aliás, detalho essa experiência no livro na estória "Cem dias na Terra do leite e do mel". E sim porque essa parte de minha vida nos soldou. Ao nos conhecermos, ele achou interessante que um "goy" tão jovem enfeixasse uma vivência no país que ele ajudara a criar. Assim é a vida. Eu tinha muita honra dessa experiência em Ayelet HaShahar e ele a percebeu. 

Como assim? Fiszel chegou a desempenhar algum papel político lá ou no Brasil? Foi um homem público?
Não diretamente. Mas trabalhou no Brasil ao lado de Leon Feffer, um dos maiores líderes comunitários de todos os tempos e, em Israel, ombreou com todas as lideranças que pontuaram a criação do Estado e sua formação. A começar por Ben Gurion, que venerava e a quem se assemelhava no final da vida. Tinha histórias sobre Golda, Dayan, Peres e Rabin. E uma memória única que era capaz de nos brindar com detalhes deliciosos. 

Sem querer antecipar o desfecho do que quer que seja, que aspecto de Fiszel é tratado no livro? Seria alguma passagem biográfica?
Não no sentido estrito do termo. Mas como sempre rodei mundo, lhe perguntei porque nunca visitara Stopnica, a cidade onde vivera a infância. Ele então desconversava a ponto de dizer que ela não mais existia. Fui lá sem avisá-lo, fotografei-a e o surpreendi com imagens. Ele sorriu e identificou os monumentos. Mas que direito tinha eu de fazer isso? Boa parte da narrativa tenta responder a essa questão enquanto a paisagem campestre polonesa se desenrola. 

Não deixou de ser uma invasão de privacidade, pois não? Como vocês dizem por lá, o tiro poderia ter saído pela culatra.
Claro, mas ele pegou leve e entendeu a boa intenção. A cidade fica a uns 150 quilômetros de Auschwitz e, tivesse a família ficado lá, não teria escapado dos nazistas. Depois disso, lembro que conversamos muito sobre o peso do acaso na vida, tema caro a Polanski. De lá, ele ainda ficou em Varsóvia, na rua Krochmalna, onde vivera a família do escritor Singer, e só depois veio para o Brasil. Em São Paulo, foi empresário e sempre teve uma visão arejada do problema palestino.

Você já disse que do livro consta mais uma história sobre Israel, sobre o kibutz mais precisamente. Como é que você foi parar lá? 
Na verdade, são mais duas as histórias sobre a vida nos kibutzim nos anos 1970. Fui bater lá com 17 anos num intervalo de estudos na Alemanha. Mas não foi fortuito ou por acaso. Os judeus sempre estiveram presentes na minha vida. Cresci no Recife, uma cidade de cristãos-novos por excelência. Como bom internacionalista, era inevitável que nossa química funcionasse. Graças ao convívio, eduquei o "olhar estrangeiro", saindo do detalhe para o cenário maior.  

As viagens e os relatos sobre a subjetividade dos povos parecem ser uma constante em seus escritos, não é? 
De certa forma, sim. É o ar que respiro, afinal. Aliás, do livro consta o relato de minha primeira viagem aos Estados Unidos. Desculpe dizer, mas não canso de relê-lo, o que é raro para um autor. Chama-se "Página de memória: o voo da Georgia". É tão abrangente quanto o capítulo "Vestígios de amor ao mundo" em que mostro cartas que mandava para meus pais, na adolescência, de várias capitais da Europa. Torço para que o leitor goste dessas reminiscências.  

Podemos dizer que o expatriamento, o exílio ou mesmo as viagens constituem o pano de fundo das narrativas?
Se temos de recorrer a um termo genérico, eu diria que "desenraizamento" é a palavra central. Vale para Fiszel e sua Stopnica natal e até para a primeira das onze estórias, que é a minha própria, chamada "As raízes de um desterrado". A observação dos costumes alheios é uma forma de identificar pertencimento. Todo mundo que se interessa por viagens, vida internacional, globalização e afins vai se identificar muito com o livro. Vai gostar de tê-lo na cabeceira.    

Sabemos de sua ligação com Paris. Ora, escritores adoram ambientar suas histórias na Cidade-Luz? O que podemos esperar?  
No mínimo, uma boa história se passa lá. Chama-se "Rue de Rennes" e retrata uma situação em que se mesclam muitos sentimentos. De fato, me sinto muito ligado à cidade que conheço desde 1973. Nunca deixei de voltar lá anualmente, com rara exceção. Em minhas crônicas do Jornal do Commercio e na revista AMANHÃ, Paris é uma constante. Quem sabe mais adiante eu não possa esmiuçar algumas dessas vivências. Dariam um livro à parte, acredite. 

Por que ser editado por uma casa portuguesa?
E por que não, se amamos tanto Portugal? A Chiado é uma editora europeia e isso tem tudo a ver com os desdobramentos futuros. O compromisso de traduzir o livro em mais duas línguas no curto prazo foi decisivo e tenho certeza de que temos bom caminho a percorrer. Ademais, minha vida profissional me leva à Europa algumas vezes ao ano e será um prazer acompanhar essa evolução de perto. Pela minha trajetória de vida, internacionalização é vital, é o ar que respiro.    

Homem de negócio com escritor é uma boa combinação?
Você sabe que no Brasil se contam nos dedos os que vivem só de literatura. Sou um noviço no ramo e sequer conheço muitos escritores. Dizem que formam um grupo fechado, solidário, mas algo sectário. Quer saber? Não acredito nessas patranhas. Há 35 anos que quebro barreiras mundo afora e sempre tive boa visão de meus objetivos. Espero deixar os negócios paulatinamente e tocar a vida escrevendo, o que daria muito prazer. Sonhar é livre, quase imperativo aos 58 anos.   

Quando teremos o lançamentos em Portugal?
Estimo que em 20 de outubro, em Lisboa. Antes disso, abriremos com um lançamento em São Paulo, minha cidade de residência. Será no dia 29 de setembro, no térreo da Livraria Cultura, na avenida Paulista. Depois vou a Porto Alegre, no dia 4 de outubro e ao Recife, a cidade de meus afetos e origem, na Cultura do Paço da Alfandega, em 6 de outubro. Outras datas em outras cidades serão confirmadas pela Chiado mais tarde. Será um período rico em vivências e trocas.

E isso é o que conta na vida, pois não?
Claro, o resto é paisagem. Quando era jovem, tive vida corporativa mundial e enfeixava demasiado poder. Valorizava as relações pessoais, mas achava que elas se repunham automaticamente, como mercadorias em supermercado. Sequer guardava cartões de visita. Hoje entesouro as amizades. Fiz mais amigos nos últimos 5 anos do que em 50. A vida me ensinou a gostar do bom combate. Mas exulto com a arte do encontro. O livro será essa esquina de renovação. Essa é a ambição maior. Fazer pontes sem pieguice.     


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