Mário Soares e o estadismo
Nem bem as redes sociais repercutiram a morte da maior personalidade política portuguesa do pós-Guerra, eis que um primo me confidenciou que, do breve convívio de ambos, dois aspectos lhe chamaram a atenção. O primeiro estava ligado à surpreendente indiferença do estadista aos bons vinhos. Pouco importava se do Alentejo ou do Douro, nenhum lhe apetecia tanto quanto um copo de água fresca. Apesar dessa deplorável lacuna curricular – deveras desconcertante, na medida em que um socialista abstêmio inspira ainda menos confiança do que um socialista carburado, pois este saberá lubrificar a dialética –, a amizade de ambos prosperou, fato que me deu acesso a boa fonte.
Antes de avançarmos rumo ao segundo ponto de divergência entre ambos, é bom lembrar que Mário Soares se notabilizou por uma característica que lhe valeu em Portugal o apelido de "o Rei". Indiferente às flutuações de popularidade, soube ganhar e perder com elegância – até mesmo com alguma soberba –, e conseguiu ser visto pelos ditos revolucionários como, essencialmente, um burguês. Na mesma medida em que estes, os burgueses, representados pela direita, o viam como francamente esquerdista, o que valia dizer "revolucionário", no jargão de antanho. Sem ser nem uma coisa nem outra, Soares foi um político hábil, de fina estirpe. De nosso lado, só comparável a FHC.
O segundo fato que o primo José Antonio Montanha destacou – este menos prosaico – o incomodava menos que o precedente. Desviando-se de bate-papo mundano caro à nossa gente, o lusitano tinha obsessão em falar sobre Mikhail Gorbachev, o artífice da Perestroika, de quem era admirador confesso. Ora, como poderia ser diferente? Ambos provinham dos dois extremos da porção ocidental do continente eurasiano. Apenas poucos anos mais velho do que o russo, Soares lutou contra uma ditadura de feição branda, porém sólida e longeva. Era legítimo, portanto, que admirasse o indômito líder que mudaria o rumo do mundo com sua Glasnost, mercê de grande coragem e desassombro.
Certo é que no curto trajeto entre Dresden e Leipzig, vim pensando sobre alguns dos estadistas europeus que me marcaram. Na Alemanha, desde Adenauer até Merkel, admiro os dois Helmuts – o Schmidt e o Kohl –, além de Willy Brandt. Na Espanha, Adolfo Suárez e, em igual medida, Felipe González. Na França, Alain Juppé, que, ironicamente, não chegará à presidência. Thatcher foi imbatível, já que Churchill paira acima de todos eles. Olof Palme morreu cedo para sabermos se resistiria ao crivo da História. Vendo Gorbachev em entrevista recente à BBC, me ocorreu que é um homem querido no mundo e execrado em seu país, mesmo no final da vida biológica.
Era esse paradoxo que Mário Soares via no russo, o que talvez abrande o julgamento de meu primo. Isso porque na política, no final, todos perderão. Enquanto não for reinventada, tenhamos um pensamento para alguns desses homens de meados do século XX que, pouco a pouco, vão nos deixando, e que ajudaram a moldar o mundo em que minha geração viveu. Doravante, espero que formas de governança inteligentes corrijam os desvios de representatividade. O que jamais prescindirá da visão clarividente de estadistas, e não de negocistas. Daí a sabedoria das últimas palavras do mandato de Obama: “A presidência não é um family business”. Soares, aliás, sabia disso. Lula, não.
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