Um goy e muitos judeus
Imagino que quando eu era criança, boa parte da comunidade judaica do Recife já tivesse deixado o bairro da Boa Vista e se instalado em endereços mais aprazíveis da cidade. Seja como for, em meados dos anos 1960, nós íamos semanalmente à Rua Santa Cruz visitar vovô e, instalados na calçada, víamos passar por ali aqueles senhores de terno escuro, nariz adunco e chapéu de abas largas; crianças de quipá e até um sujeito de barba negra, quase azul, que, segundo contavam Alice e Joãozinho, saía de casa em casa se oferecendo para matar as galinhas. Embora fossem pobres, dizia-se que eram pessoas esforçadas e inteligentes. E que muitos dos parentes daqueles passantes tinham morrido na Guerra, o que despertava em mim uma mistura de simpatia com tristeza.
Uma vez, ali mesmo no mercado da Boa Vista, vi um homem falar deles como se os conhecesse mais de perto: "Muitos têm movelaria na Rua do Aragão. Para ir à sinagoga, eles passam pela Praça Maciel Pinheiro onde param para prosear. Uma moça se apaixonou pelo meu primo, mas a família não deixou-os namorar e trouxeram um mulato de Israel para ela. Vá entender! Eles gostam de trabalhar, mas tudo deles é diferente e feito para a colônia. Escola, clube e cemitério. Até a comida deles é diferente. Os que não nasceram aqui, vieram da Bessarábia, um fim de mundo que fica nos domínios da União Soviética. Já imaginou a alegria deles de chegar aqui? Não há guerra nem frio. E ainda podem ir à praia, tomar água de coco, montar seus negócios e criar a família".
Ainda menino, passei uma vez na sinagoga da Rua Martins Junior e olhei pelo basculante o que se passava lá dentro. O altar era bem acanhado, uns homens rezavam balançando o corpo, outros conversavam e o mais velho deles, que parecia ser uma espécie de padre, estava enrolado num poncho de linho com listas pretas. Não dava para entender uma só palavra do que diziam e, não sei se era por conta da história que ouvira, mas eles me pareciam tristes e não riam com tanta vontade como as outras pessoas que eu conhecia. Um dia iria até as bandas do Salesiano onde dizia-se que ficava o colégio das crianças. Daquelas andanças, vi que eles se identificavam com um castiçal e que tinham especial orgulho de Israel, um país seco como o Agreste, mas atravessado por canos de irrigação.
Um dia ganhei de presente de uma amiga de mamãe, Marlene Souto Maior, o livro "Exodus" sobre o navio de refugiados a caminho da Palestina. De repente, tudo aquilo ganhou certa tangibilidade. Daí vieram os primeiros amigos da colônia, gente divertida que trazia um olhar diferente às mínimas coisas. Quando comecei a rodar mundo, aos 15 anos, acompanhar em que consistia a história daquele povo na França, Inglaterra, Alemanha e Áustria dava um fio condutor adicional à própria história dos países visitados. Não tardou e era eu que chegava a Israel, lá pelos 18 anos. Mas então o mundo deles já não me era mais tão estranho. Muitos virariam grandes amigos. Tanto assim foi que nas últimas décadas dificilmente se passou um ano sem uma comemoração alusiva à Páscoa ou às Grandes Festas.
O mais interessante, contudo, eu ainda não contei. A meses dos 60 anos, depois de uma vida em que minhas afiliações e preferências se consolidaram aos olhos de tanta gente, é muito comum que as pessoas se aproximem e me perguntem: "Você é judeu?" ou "Por que você tem tanta ligação com os judeus?". No fundo, esse tipo de questionamento trai um certo desconforto com tanta proximidade. Entendo até bem quando as cobranças mais contundentes partem de quem não concorda com as posições políticas de Israel, o que é compreensível já que não há consenso a respeito sequer entre os próprios judeus. Há, contudo, outra vertente. É aquela que, sutilmente, insinua que não sei escolher bem as companhias, que deveria me manter mais acautelado e distante. E isso por razões que ninguém consegue explicar.
Isso dito, o que se depreende dessa longa convivência? Pois bem, minha vida resultou enriquecida. Não saberia dizer em que vertentes pode ter sido frustrante para outros goyim, mas de minha parte só recebi gentilezas e até mesmo certa grandeza. Com eles me diverti e me emocionei em grande medida. Prefiro entesourar as pessoas ternas e generosas que conheci e desde cedo assimilei o que me disse na Alemanha meu colega de Goethe-Institut, Pinchas Zimmerman. Diante de meus embates com o teimoso filósofo Israel Weiss, de Haifa, ele disse: "Fernando, um judeu também tem o direito de ser burro" ("Ein Jude hat auch das Recht dumm zu sein"). Conceder-lhes essa falibilidade foi o corolário das cenas que via desfilar pela janela da casa de vovô, meio século atrás. Por fim, afetos não se explicam.
Isso dito, Shaná Tová!
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