Mistérios sob o sol nascente
Que o Brasil não é um país de compreensão fácil para amadores, disso sabemos todos. E vamos aqui dar o devido crédito ao maestro Tom Jobim, autor presumido do achado. Se é difícil bater nossos recordes em quesitos como burocracia, legislação e descrédito da classe política, há de se dizer que pontuamos apenas no meio da escala no cômputo geral. Afinal, temos lugares muito mais misteriosos e cujos códigos culturais estão a anos-luz de uma compreensão mínima até para gente dotada de bom repertório, como é nosso caso. Quer exemplos? Pois vamos a eles. Como entender que o povo da Coreia do Norte se dobre diante dos caprichos de um ditador que mata sumariamente todos aqueles que questionam a verdade oficial de que vivem no melhor país do mundo? Como aceitar que em muitos países islâmicos e africanos as mulheres sejam submetidas à laceração do clítoris como forma de evitar que tenham prazer sexual? O que explica que o líder venezuelano leve o país à lona e achincalhe as instituições nacionais, numa sangria sem fim? É, portanto, muito extensa a lista de absurdos que assolam o mundo.
Ocorre, porém, que nem tudo tende ao negativo, como essa abertura pode dar a entender. Temos ações virtuosas acontecendo a cada instante em todos os quadrantes da Terra e elas compensam largamente o lado nefasto. Nesse contexto, tenho um antídoto poderoso para as horas de baixo astral, aquelas em que pensamos que a barbárie venceu a civilização. Penso no Japão e nos mistérios insondáveis do país das cerejeiras em flor. Desde que lá estive pela primeira vez em 1984, decolei de Narita com a convicção de que conhecera um lugar especial, que só poderia me trazer lições e alegrias no futuro. Isso porque lá encontrara formas sutis de celebrar a vida e a beleza, geralmente não efusivas. Embora econômicas e contidas, isso não quer dizer que sejam imunes à extravagância. Essa introdução vem bem a propósito do que o mundo leu nesse fim de semana a respeito de dois singelos melões de Hokkaido que foram leiloados por US$ 27 mil. Ou seja, ao preço de um carro para lá de bom. E não se tratava desses eventos feitos para plutocratas e exibicionistas, promovidos sob medida para ver quem é mais irracional na queima de dinheiro na fogueira das vaidades.
Quem já esteve no Japão e se deliciou com uma visita ao andar que as lojas de departamento dedicam à comida, talvez não fique assim tão espantado. Para provar que o caso acima não é puramente de exceção, basta dizer que um cacho de uvas, cada uma do tamanho de uma bola de tênis, já foi vendido por US$ 11 mil, segundo a mesma matéria da UOL. É claro que se trata de produtos esmeradíssimos, cultivados segundo técnicas cujo segredo jaz na prática e no coração de agricultores devotados. É também claro que poucas frutas conseguem atingir o prestígio dos melões de Yubari, ditos "hashiri" – ansiosamente aguardados por ser os primeiros da estação. Lojas como a Sembiyika vendem frutas com requintes de joalherias. Inclusive melancias quadradas, concebidas para serem acomodadas em prateleiras exíguas, num país onde o espaço é mínimo. Tudo isso encerra uma verdade singela: até nas coisas mais simples o Japão corre atrás do valor agregado e da diferenciação. Ademais, abomina o binômio bom e barato. Para os nipônicos, a norma manda pagar caro pelo que assim merece. E isso envolve marca, origem, embalagem e ocasião.
Como é comum acontecer em sociedades ditas de "alto contexto", em que os símbolos são compartilhados pelo todo de uma população homogênea, o significado de semelhantes presentes é do conhecimento de quem os dá e de quem recebe. De outra forma, não faria sentido. O mais próximo que testemunhei de experiências similares foi acompanhar os leilões de peixe no mercado de Tusijiki, em Tóquio. Como sabemos, é corriqueiro que atuns "bluefin" de 200 quilos sejam vendidos a bem mais de US$ 100 mil. Horas mais tarde, serão degustados em mesas exclusivas de restaurantes de Ginza, sob forma de suculentos sashimis. Das muitas recordações que entesouro do Japão, tenho bem presente a recomendação de que é vital tentar se destacar em alguma coisa para que o produto ganhe espaço diferenciado no mercado, seja eletrônico ou comestível. É o que eles chamam de "ichiban", ou seja, de ser o número 1 em determinadas características. Portanto, mais do que uma afronta ao bom senso, o que se conclui é que o Japão honra sua vocação insular e eleva à forma da arte até as coisas mais simples do cotidiano. Daí ser um deleite visitá-lo.
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