Caos nas calçadas

Juro que venho encontrando dificuldades crescentes para entender o mundo. Há uns 50 anos, eu tinha uma bicicleta. Era uma Monarck verde, muito sólida e disposta, que respondia bem aos comandos do menino curioso que eu era. Quando passei à segunda, um...
Caos nas calçadas

Juro que venho encontrando dificuldades crescentes para entender o mundo. Há uns 50 anos, eu tinha uma bicicleta. Era uma Monarck verde, muito sólida e disposta, que respondia bem aos comandos do menino curioso que eu era. Quando passei à segunda, uma Caloi preta, não tinha lugar no centro do Recife onde eu não fosse fazer uma exploração furtiva, quase sempre sem que meus pais soubessem. Até aqui, tudo normal. O detalhe é que andar sobre duas rodas jamais me deu a sensação de que eu era um sujeito moralmente superior aos pedestres ou, como é de regra hoje, que uma bicicleta me investia da aura de uma espécie de herói urbano. Longe disso.  

Digo mais: eu não era o único. Se minhas bicicletas tinham função mais recreativa do que utilitária, muitas das pessoas com quem convivi na infância tinham uma para trabalhar. Seu Zé Gago, o eletricista, chegava montado na sua e, antes de ir embora, fazia minuciosa verificação nos freios, farol e campainha, ademais de lhe dar um polimento de regra. O mesmo valia para pintores de paredes e encanadores que acorriam ao edifício Capibaribe para prestar serviços. Apesar de vararem centenas de quilômetros ao mês, nunca se sentiram acima do restante da humanidade. Mas tanto no Brasil quanto no mundo, as coisas estão mudando. E as tais duas rodas viraram um inferno.  

Assim sendo, é cada vez menor a faixa destinada a pedestres de raiz nas calçadas. Pois não é raro que se encontre, mesmo aqui em Estrasburgo, pistas generosas de duas faixas para ciclistas e um trecho acanhado por onde se espremem pedestres em ambas as mãos, alguns com dificuldade de locomoção, o que provoca sérios engarrafamentos. Quanto aos ciclistas, é inconcebível a velocidade com que circulam. Passam zunindo a centímetros de idosos para quem uma única queda pode significar internação sine die, quando não uma passagem antecipada para o cemitério. Mas para sua majestade o ciclista, especialmente aquele idiota que chama bicicleta de "bike", a vida só vale se for vivida sobre duas rodas. 

Como se já não fosse infernal aturá-los sobre a própria calçada, muitas vezes se equilibrando atabalhoadamente para conversar com um reles pedestre, agora as coisas se agravaram exponencialmente porque não é só a turma do skate que disputa o passeio público, o que pelo menos alimentava nossa torcida silenciosa para que quebrassem um osso. Não, agora na França há uma febre em torno de uma tal "trottinette électrique", veículo que devassa todas as brechas. Há dias eu conversava com um velho padeiro aposentado que encontrei no centro, e eis que uma dessas geringonças passou como flecha entre nós. Há também uma versão similar com assento, cujos pilotos tomamos por cadeirantes sem ser. 

Como se isso não bastasse, temos os odiosos "overboards", uma espécie de prancha ligada a duas rodas cujos pilotos têm todas as características aparentes de imbecis e que fazem questão absoluta de se comportarem como tais. Semana passada, em Frankfurt, vi uma profusão das "monorodas", que são, como o nome diz, uma versão solteira do "overboard". Para completar o caos das calçadas, somem-se pedestres que não desgrudam o olho do celular, provocando a todo instante colisões inocentes, mas contumazes. Há 25 anos que optei pelas calçadas e pelo transporte público. Se não tenho por que abdicar dos segundos, não sei o que será das primeiras, se as coisas continuarem a evoluir desse jeito.  

Pela primeira vez em anos, sentado à espera do ônibus, começo a achar que o mundo do automóvel é a quintessência da civilidade. Eis mais um exemplo de que a humanidade é uma extrapolação de bilhões de seres iguais a nós. E, como tal, de vez em quando erra na dose, por melhores que sejam as intenções. 

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Sábado, 23 Novembro 2024

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