Receita de um bom Natal
Uma vez peguei um cruzeiro em pleno Natal. Saiu por metade do preço da mesma viagem, se fosse feita dias mais tarde, no Réveillon. É compreensível, na medida em que as pessoas querem passar o dia 24 de dezembro em família, e não em alto mar, cercadas de estranhos. Mas havia ali um detalhe desconcertante. Pois não precisei observar muito para perceber que bom número de famílias havia perdido entes queridos recentemente, daí optar por passar um Natal bem longe da terra, como forma de fugir de referenciais que pudessem ser dolorosos e agravassem o luto. Na hora da ceia, sequer compareceram ao salão ou, se o fizeram, foi só para ver o bastante para se convencer de que o melhor a fazer era tomar um Stillnox e dormir na cabine. No dia seguinte, o sol voltaria a nascer.
E eu, o que sinto no Natal? Nada de especial, para ser bem sincero. Se perguntado qual foi o melhor de minha vida, eu diria que gostava muito da época em que o passava em minha cidade natal, Garanhuns, Pernambuco, onde a avenida principal se paramentava para sediar as atrações tão rústicas quanto deliciosas. Comprávamos uva e maçã nas barracas; jogávamos na roleta para ganhar prendas irrisórias; fazíamos tiro ao alvo com balas de cortiça ou ar comprimido; ouvíamos o alto-falante anunciando nomes, seguidos de músicas de Roberto Carlos, oferecidas por uma paquera e, mais tarde, tomávamos cerveja como nossos pais e, eventualmente, descíamos ao meretrício para nos provarmos viris entre primos e amigos locais. Mas isso só viria mais tarde e, pensando bem, já não integrava o pacote de Natal.
Confesso que ficava especialmente excitado com o Réveillon. Quando criança, tratava de ficar perto de meus pais na hora do apagar das luzes. Ainda hoje não sei se isso era prática restrita a nosso torrão, mas à meia-noite do dia 31 de dezembro, um blecaute de um longo minuto anunciava a chegada do Ano Novo. Quando as luzes se acendiam, tudo parecia mais colorido do que antes, todos se abraçavam e se beijavam e alguém abria um espumante adocicado que era servido em taças rasas. O passar dos anos era, contrariamente a agora, um evento promissor. Qualquer ano a mais significava que estávamos mais perto da idade de ir a filmes proibidos para menores de 14 anos e, quem sabe, logo chegaríamos aos 18, o marco definitivo do ingresso na vida adulta. Eu só deplorava quem fazia aniversário no Natal pelo fato de não ter direito a presente duplo.
De certa altura em diante, comecei a passar a data longe do que me restava de família. O primeiro foi em 1975, em Paris, onde até a solidão é uma festa. No ano seguinte, estava na Alemanha, achando meu caminho sobre calçadas cobertas de neve, na companhia de um amigo do Mali, ambos tangidos do convívio das famílias alemãs que levavam o Natal muito a sério. Dois anos mais tarde, estava na Inglaterra. E assim o calendário natalino foi se desdobrando. Nos anos em que namorava com judias, a data passava em branco e viajávamos sem quaisquer remorsos de deixar para trás parentes desassistidos. Assim sendo, em quase 60 anos, lembro do Natal em Londres, Paris, Radolfzell, Barcelona, Firenze, Lisboa, Pequim, Varadero, Tóquio, Jerusalém, Hong Kong, Auckland, Helsinque, Istambul, São Paulo, Rio de Janeiro, Punta del Este, Cingapura, Bali, Bruxelas, Avignon, Nova Déli e Boston.
Onde quer que tenha estado, é claro que o Natal de Garanhuns sempre foi evocado, não importa com quem eu estivesse. Hoje em dia, com o advento das fotografias instantâneas, recebo com alegria as imagens de mamãe com minhas tias e primos a confraternizar no Recife. Não tenho hábito de ligar no dia, sob a alegação de que as linhas estão sempre sobrecarregadas – uma desculpa dos anos 1970, inconcebível hoje, até onde sei. Mas quando ligo no dia 23 para repetir meus votos, mamãe sempre rebate com a mesma pergunta: "Não vai aparecer não, bicho do mato? Para onde vai dessa vez?". Então sorrimos e ela arremata: "Você herdou essas esquisitices da família de seu pai, do meu lado é que não foi. Onde já se viu a pessoa passar o Natal sozinha, em algum lugar do mundo?". Espero ainda levar esse puxão de orelhas por muito tempo.
O Natal de 2017 não será muito diferente dos anteriores. Pouco a pouco, me torno um sujeito mais sentimental. Desapegado a coisas materiais – a chave para o sucesso que tive na vida –, só me preocupa, hoje como ontem, perder as coisas que já temos e a que não damos valor: paz de espírito, saúde, energia, criatividade e combatividade. A cada ano que passa, cresce o número de pessoas de referência que morreram. Sejam elas mais próximas ou, simplesmente, míticas da geração a que pertenço. Ao ler obituários nos jornais, as datas de nascimento começam a se avizinhar de 1958. E o que é pior, vejo gente que nasceu nos anos 1960, 1970, 1980 e 1990, e que já se foi, o que é de uma brutalidade inominável. Não sei por quanto tempo me aguentarei por aqui. Mas bem que queria poder dar cabo à minha missão de vida, que sempre tive tão clara. Se não der, não estarei aqui para lamentar.
Avesso à pieguice, muito embora ocasionalmente emotivo – mais nas vitórias do que com o sofrimento –, aproveito essa última palavra antes do Natal para deixar um abraço geral a todos que me acompanham aqui em AMANHÃ. Mais especificamente, pelo blog "Ao redor do mundo", que nasceu dias desses por sugestão de Marcos Graciani, e que já atingiu a marca de centenas de artigos e muitos milhares de acessos. Ao público das redes sociais, registro também um abraço. Nem sempre sou um sujeito muito fácil de lidar e muitas vezes meu limitado apreço pelo convívio humano pode me distanciar emocionalmente de pessoas que me querem bem. Como diz mamãe, sou um cara que pode ser amoroso e arisco ao mesmo tempo. Inclusive nessa época do ano. Seja como for, espero que todos passem dias de muita ventura ao lado dos seus.
Feliz Natal.
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