O dia que, se pudesse, esqueceria

No domingo fui ver "Simonal" (na foto, uma das cenas). Já é o segundo filme a que assisto sobre aquele que foi por muitos considerado uma das maiores presenças de palco do mundo e, seguramente, o maior "showman" que o Brasil jamais tenha tido. Sempre...
O dia que, se pudesse, esqueceria

No domingo fui ver "Simonal" (na foto, uma das cenas). Já é o segundo filme a que assisto sobre aquele que foi por muitos considerado uma das maiores presenças de palco do mundo e, seguramente, o maior "showman" que o Brasil jamais tenha tido. Sempre que falavam dele, tanto Mièle quanto Chico Anysio – duas inteligências superiores – ficavam arrepiados com o carisma sem limites de quem chegou a hipnotizar o Maracanãzinho na abertura de um show de Sergio Mendes, fazendo com que 30 mil pessoas cantassem em uníssono "Meu limão, meu limoeiro, meu pé de jacarandá." E o que dizer de Simonal fazendo dueto com Sarah Vaughan, levando a diva americana ao delírio, a uma espécie de êxtase espiritual, diante do talento do rapaz que viera da favela, do ex-soldado raso, do filho de empregada doméstica, e que um dia foi descoberto por Carlos Imperial? 

É ocioso recapitular aqui o sucedido a ele. Rico, exibicionista, irreverente e, é claro, sem noção de como gerir administrativamente a máquina de sucesso da qual ele era o carro-chefe, um belo dia descobriu-se uma fraude na empresa. E dita fraude levou à penhora de bens e a transtornos materiais que não combinavam com o estilo de vida faustoso com que entretinha a mulher, dois filhos e uma multidão de apaniguados, uma espécie de família estendida. Revoltado com o sucedido, desconfiou do contador. Com conhecidos na polícia, no nefando DOPS especialmente, o braço de repressão do regime militar, aceitou os préstimos de policiais venais que, usando os métodos consagrados na época, obrigaram o pretenso infrator a assinar uma confissão apócrifa. Com o escândalo na rua, eis que Simonal passou a ser chamado de "dedo duro", de informante do regime, o que era uma infâmia na época.  

O efeito sobre sua reputação foi devastador. Com a agenda de shows à míngua, contando cancelamento após cancelamento, já não havia quem o quisesse ouvir. A máquina do entretenimento o colocara na geladeira, alguns anos antes de Cacá Diegues denunciar as patrulhas ideológicas. Dando um salto no tempo narrativo, Simonal morreu aos 62 anos, em 2000. Passou os últimos 25 tentando explicar que o episódio fora um terrível mal-entendido, e que ele jamais tivera simpatias por qualquer regime. Que seu recado era apolítico e que este ele passava no palco. Mas quem queria saber de explicações? Mesmo porque, por trás das antipatias que haviam chegado a contaminar Elis Regina (por ter cantado o Hino Nacional), havia nele o agravante da cor da pele. O Brasil branco não perdoava um negro que rompesse a eclusa que separava o mundo de cada um.  

Mas se a questão racial já é outra história, a política era um fato concreto. E advém daí um dia de que tenho vergonha de relembrar. Cheguei ao bar Brahma num fim de tarde, na mítica esquina da Ipiranga com a São João, e lá esperaria um amigo. Havia dois ambientes. O restaurante, sem clientes àquela hora, e o balcão do bar onde pedi um chope. Pretendia ler o jornal e esperar. Então vi que tinha um homem sentado ali, um mulato (sei que é termo "proibido", mas não vou mudar) vestido de blazer claro. Quando nossos olhos se cruzaram, ele levantou o copo à guisa de brinde e disse "saúde, amizade", nitidamente um pouco alto, como ficam os fadados a beber sem companhia. Era Simonal. Eu não tive dúvida. Dei-lhe as costas, sem sequer retribuir o cumprimento, e pedi ao barman que levasse o chope para o salão, dando a entender que me incomodava ficar ali. Era 1989.

Dito de outra forma, fiz o mesmo gesto moralista e soberbo cujos efeitos, antes de mim, ele já vivenciara na pele (literalmente) milhares de vezes desde que caíra em desgraça. Ora, naquela época eu sabia que não há fumaça sem fogo, mas que o que ele  fizera (ou o que tinham feito para ele) fora uma bobagem dissociada de qualquer conotação política. Ademais, dentro de minha cabeça, sob o ponto de vista cognitivo, sendo eu de Garanhuns, dar uma surra numa pessoa que tivesse feito por onde merecer, não chegava a ser lá tão errado num país de justiça lenta. O fato é que desde então eu me sinto uma espécie de cúmplice de linchamento. Como é que um boêmio de minha lavra deixou um cara beber só numa tarde de sol? Quem era eu para me arvorar de palmatória do mundo? E o que temia? Que alguém me visse confraternizando com o mais solitário dos homens? 

Tenho certeza de que devo ter incorrido em outras falhas ao longo da vida. Perfeição e gente acima de toda suspeita, só existe no Facebook. Mas não lembro de nenhum episódio de que me envergonhe tanto. Foi com a moral no subsolo que acabou meu domingo. Ao ver o filme, aflorou minha infância, e a alegria que varria a casa quando ele aparecia e papai dizia "mas esse neguinho nasceu mesmo com uma estrela". Para mamãe, ele tornava uma música simples numa alegria geral. Meu irmão tentava imitá-lo colocando uma faixa em torno da cabeça, na altura da testa, e Teresinha vinha da cozinha para dizer que ele era lindo e que, como ela, tinha orgulho de ser negro. Quem era eu, portanto, para lhe negar um cumprimento, um aceno, um aperto de mão? Por um dia fui um cossaco de "pogrom", e embarquei no efeito manada. Foi um dia que se pudesse, esqueceria. Mas não posso. 

Sei que é tarde, mas sorry, Simonal. 

Veja mais notícias sobre Memória.

Veja também:

 

Comentários:

Nenhum comentário feito ainda. Seja o primeiro a enviar um comentário
Visitante
Sábado, 23 Novembro 2024

Ao aceitar, você acessará um serviço fornecido por terceiros externos a https://amanha.com.br./