Meu pai, minha plateia

Papai nasceu em Garanhuns, Pernambuco, em 20 de junho de 1927. Para dizê-lo de outra forma, veio ao mundo no dia mais curto do ano, na véspera da entrada oficial do inverno, e era o mais novo rebento de uma família de três irmãos e seis irmãs. Descen...
Meu pai, minha plateia

Papai nasceu em Garanhuns, Pernambuco, em 20 de junho de 1927. Para dizê-lo de outra forma, veio ao mundo no dia mais curto do ano, na véspera da entrada oficial do inverno, e era o mais novo rebento de uma família de três irmãos e seis irmãs. Descendia de ambos os lados de uma linhagem política notável, mas passou a vida se queixando de ter sido um pouco deixado de lado pelos mais velhos, a começar pelo pai, que morreu em 1944, logo quando ele tinha 17 anos. No ano seguinte, mais precisamente em 5 de agosto de 1945, no dia da explosão atômica de Hiroshima, começou a flertar com mamãe, com quem viria a casar doze anos mais tarde, quando ele tinha 30 anos e ela 25. Desse casamento, o único que teve, resultaram dois filhos. Eu, em 1958, e meu irmão em 1961. Papai morreu em 2 de janeiro de 2000, portanto aos 72 anos. Desde então, é raro o dia que não lembre dele. Muito embora, é bom que o diga, jamais tenha vertido uma só lágrima pela sua morte, que aconteceu quando eu estava de férias na Nova Zelândia. Talvez o fato de não ter comparecido a seu sepultamento, de que soube com atraso, tenha deixado em mim aquela sensação de que a morte, de fato, não o levou, apesar da lápide que diz o contrário no cemitério de Santo Amaro, no Recife, onde estive por duas vezes desde que ele se foi.    

Voltando à questão da matriz afetiva de papai, havia algo de mal calibrado. Muito carinhoso comigo e meu irmão, não era raro que nos queixássemos de tanto beijo e abraço. "Seu bigode me pinica", dizia o meu irmão. Em seu favor, ele dizia que teria gostado que o pai dele tivesse sido assim com ele, e que fora criado por Dadai, madrinha de meu irmão, empregada da casa dele, uma negra de mil argolas nos pulsos, descendente direta de escravos por parte de mãe, e dona uma beiçola imensa que lhe despencava da boca, mostrando dentes de marfim. Dizia-se que podia ser filha de meu avô. Em contraposição a tanta ternura, papai também era homem de temperamento dito difícil. Gostava de ajudar as pessoas, de orientá-las, de adotá-las à sua maneira. Mas também queria que tanto zelo fosse reciprocado com a aceitação da tutela. Se isso não acontecesse como o intentado, podia ficar genuinamente magoado ou colérico. Com mamãe, pessoa de índole muito independente e altiva, criada com muitos mimos e vontades, o embate era constante. Ter começado a namorar sob a égide de Hiroshima foi bastante emblemático. Tenho más lembranças dos conflitos domésticos, das discussões irrisórias, do bate-boca inócuo, da disputa por territórios e pela primazia de ter a palavra final. Isso desgastou parte de minha infância e adolescência.

Disputas à parte, foi graças a ele que me lancei no mundo muito cedo. Papai foi o melhor parceiro que um jovem com sede de estrada poderia ter. Para ele, que trabalhou nos escritórios regionais do Recife das montadoras do Sudeste, um homem tinha de ser antes de tudo muito seguro. E só uma coisa poderia dotá-lo dessa segurança, a que ele atribuía tanto peso: o conhecimento. E este conhecimento só era legítimo se voltado para o desfrute da vida. Daí que um verniz mundano era ingrediente imprescindível em seu breviário. Roberto Campos era admirável não por ser apenas um homem cultíssimo, mas porque tinha uma garçonnière no Centro de São Paulo para encontros amorosos. O mesmo valia para Walther Moreira Salles.  Mario Henrique Simonsen era certamente um sujeito genial sob mais de um aspecto. Mas para papai contava, sobretudo, que ele fosse um bom copo, um apreciador temerário de uísque, bebida que amava. O trabalho em si era secundário. Um homem poderia ser o que quisesse. A forma como ganharia a vida era secundária pois resultaria, fundamentalmente, de seu estar à vontade no mundo. Para ele, um homem que falasse alguns idiomas e tivesse na bagagem uma rodagem apreciável de mundo, encontraria seu lugar onde estivesse. Porque só isso já lhe conferia uma aura de vitorioso. E isso já bastava. 

Destacar os pontos negativos de papai às vésperas de uma data que homenageia todos os pais é um tanto descabido. Mas é verdade que ele os tinha. Admiti-lo é, de certa forma, apontar o dedo em minha própria direção porque acho que herdei alguns desses defeitos de forma exponencial, como costuma acontecer na propagação dos tsunamis. Dele me ficou uma certa soberba para com o saber convencional. Um desprezo por ser o que todo mundo pode ser. Dele também remanesce uma centelha de narcisismo que me faz implacável para com as coisas que não são exatamente do jeito que gostaria que elas fossem. Por fim, há uma componente de intolerância que pode se manifestar no uso desabrido da ironia e uma visão excessivamente benevolente de si próprio e de seus defeitos. Mais importante do que inventariar esse arrazoado, contudo, seria elencar o que ele foi e que eu tento ser. Papai era ótimo amigo dos amigos. Quando estes precisavam, era o primeiro a acudir. Gosto de pensar que herdei este traço. Tal como ele, gosto da microhistória da vida, das pequenas coisas do cotidiano – uma feira livre, uma conversa inspirada que brota de onde menos se espera. No mais, nos assemelhamos no pavor a médico, na idealização dos cenários, no romantismo desenfreado e desprezo pela realidade. Temos alma sonhadora.  

A grande diferença geracional entre ambos foi simples e para além dos 30 anos que nos separavam. Se ele se queixou a vida toda de não ter tido um pai, eu não posso dizer o mesmo. Tive-o e, de certa forma, é como se continuasse a tê-lo a meu lado. Desde que ele morreu, sempre tive a sensação de jogar futebol num estádio vazio. Ele era meu melhor público, o torcedor de honra, o insubstituível camisa 12 do time. Todo dia, quando escrevo crônicas, artigos, ensaios, contos e construo um romance, só me vem à cabeça uma pergunta: o que papai diria disso aqui? Daí fica fácil concluir que papai só vai morrer para valer, quando eu próprio me for. Enquanto for vivo, sinto-o pulsante a meu lado. 

Veja mais notícias sobre Memória.

Veja também:

 

Comentários:

Nenhum comentário feito ainda. Seja o primeiro a enviar um comentário
Visitante
Sábado, 23 Novembro 2024

Ao aceitar, você acessará um serviço fornecido por terceiros externos a https://amanha.com.br./