Fiszel Czeresnia, um grande brasileiro

Tempo desses, sentindo o fim se aproximar, Fiszel Czeresnia (à esquerda, na foto, ao lado de Sara, sua irmã) resolveu se refugiar em Stopnica, Polônia, o "shtetl" de onde saiu há oitenta anos para nunca mais voltar. É...
Memória

Tempo desses, sentindo o fim se aproximar, Fiszel Czeresnia (à esquerda, na foto, ao lado de Sara, sua irmã) resolveu se refugiar em Stopnica, Polônia, o "shtetl" de onde saiu há oitenta anos para nunca mais voltar. É claro que a viagem foi virtual e narrada pela bruma fechada da idade. Meu sogro durante uns anos, para mim ele será sempre o mais querido e admirável de um conjunto de homens probos e de bem. Conheci-o em 1979, no Recife. Foi a primeira e única vez que nos visitou. Queria ir a Caruaru e à famosa feira. Na entrada da cidade, um guia mirim correu atrás do carro e ele afinal parou. Com sotaque carregado, pediu que abríssemos espaço para o menino. Para ele, era uma questão de compensar os esforços de quem tinha se empenhado em nos seguir. Quando chegou ao Brasil, vendera gravata no Viaduto do Chá. "Sei o que é laçar um freguês", brincou. Era então sócio dos cunhados numa das mais prestigiosas construtoras do Brasil.

Dez dias depois da vinda dele e família, eu já estava em São Paulo à espera da filha por quem me apaixonara. Nessa época, eles moravam na alameda Tietê. Ele e Rosa, a esposa, me mimaram a mais não poder. Conheci o Suntory, o lindo restaurante japonês; e até as mulatas de Sargentelli do então "Oba, Oba". Depois de ter vivido três meses em Israel, no kibutz Ayelet HashaHar, eu já tinha uma conversa inspirada sobre o pequeno País que ele ajudara a fundar. Ora, Fiszel tinha sido um "chalutz" – um pioneiro – ainda nos anos anteriores à Independência. Conheceu todo mundo: Ben Gurion, Beguin, Weizman, Eshkol, Goldman, Rabin, Peres, Golda, Shamir, Dayan e dezenas de líderes da Diáspora e da Palestina – os "sabras". Dizia com orgulho que o primeiro bebê de Bror Chaïl, o kibutz brasileiro, fora a sobrinha. Nesse contexto, nossos interesses sempre foram confluentes: política, história, geografia, gastronomia, cinema, filosofia etc. Juntos, passávamos horas confabulando, impressionando um ao outro com a riqueza de nossas memórias. Por ironia, não tivesse sido por Hitler, Fiszel teria sido rabino. O destino fez dele empresário de sucesso.

Minha vida sentimental continuou; o namoro com Tamara se desfez mas, fisgado por São Paulo, lá fui viver e, vez por outra, o encontrava nos bons restaurantes. Rosa então me contava do casamento das meninas e dos muitos netinhos – sete, ao todo. "Mazel tov". Eles eram felizes e mereciam cada fração do prêmio da loteria da vida. Os anos passaram e o mundo continuou girando. Até que refiz meu relacionamento com a filha e assim começou o novo milênio. Dessa vez, pensei, quaisquer que fossem meus rumos amorosos, eu não queria mais me separar dele. Se estávamos, eu e ela meio, estremecidos, nada me impedia de ir visitá-lo na casa da Benedito Chaves para uma prosa. A ele e a Rosa devo os melhores momentos em família que tive na vida.

Rosa morreu em 2009. Passou então a ser comum nos telefonarmos: "Vamos comer um cordeiro no Café Gardênia?". Lembro que uma vez eu lhe trouxe de Joinville, numa penela selada a cera, um ganso assado, acompanhado de repolho roxo. Voei para Congonhas com a panela morna no colo e entreguei-a a tempo de almoçá-lo naquele dia. "Tem o sabor do campo polonês", disse agradecido. No inverno da vida, Fiszel terá sido a figura humana de maior envergadura que conheci. Quando saímos para passear de carro em 1979, na noite iluminada da avenida Paulista, li no vidro traseiro do Opala que ele dirigia um adesivo que me faria refletir nos anos seguintes: "Sou brasileiro, judeu e sionista". A harmonia dessa trindade, eu haveria de testemunhar intensamente nas décadas seguintes.

Fiszel foi um brasileiro apaixonado que, entre idas e vindas, se rendeu ao país que o acolheu e por ele brigou. Sobre a dimensão judaica de sua pessoa – o que quer que isso signifique –, não pesam dúvidas. Aceitava até de bom grado o que dele me disse certa feita a psicanalista Verônica Mautner: Fiszel era um judeu profissional. "Ela está certa", confirmou com um sorriso maroto. E quanto ao sionismo, com todo respeito que devotava aos palestinos, sempre lhe interpretei no semblante a clareza da mensagem: quem nasceu a meia-hora do complexo de Auschwitz-Birkenau e ali viu perecerem muitos parentes e amigos, sabe que ser sionista não é um vão propósito. Fiszel morreu na quinta-feira, 26 de fevereiro, aos 92 anos, ao cabo de uma vida que lhe deu tudo.

Fernando Dourado Filho é colunista da revista AMANHÃ.

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