Christmas Blues
Estresse e depressão são apenas os dois componentes mais aparentes de um estado de alma que toma forma nessa época do ano. Dizem que ambos se elevam a 75% da taxa normal, o que explica que os atendimentos de urgência hospitalar cresçam exponencialmente. De uma feita, embarquei num cruzeiro marítimo nesta época porque nem eu queria trazer minha namorada para conhecer minha família, nem tampouco queria ficar com a dela, uma gente muito boa, mas numerosa e ruidosa demais para os meus padrões. Em navegação em alto mar, porém, qual não foi minha surpresa quando vi que pouca gente comparecera à aparatosa ceia de Natal. E que, muitas das pessoas que deram o ar da graça, ficavam só um pouquinho, enxugavam as lágrimas e sumiam para suas cabines. Um oficial italiano me deu a explicação: "Tem gente que viaja nessa época para fugir do sofrimento. Geralmente são pessoas com a alma enlutada, que perderam entes queridos recentemente. Eles acham que o mar pode cicatrizar, mas a dor está neles e os acompanha mesmo em terrenos neutros. Ecco".
Bem a propósito, passei parte da última madrugada voando entre São Paulo e o Recife. Enquanto lia o segundo volume das memórias de Jô Soares – muito laudatórias, muito adjetivadas, não recomendo –, ouvia a conversa que rolava bem ao lado. Um sujeito já de meia-idade se queixava ao amigo e vizinho de poltrona sobre a recorrência do comportamento da mulher: "Se as coisas já são difíceis porque a vida é difícil, ela as torna bem piores". E contou que ela pode até passar bem o ano, mas que sabota as alegrias do casal em momentos cruciais sob qualquer pretexto: "Qualquer pessoa a manipula. Basta o irmão dizer que não tem com quem deixar a tartaruga para ela dizer que vai cancelar nossa viagem a Búzios. Quando eu cancelo, ela se arrepende e diz que estava só pensando em voz alta. E que eu ajo por impulso porque quero que as coisas saiam do meu jeito. Para ela, isso é autoritarismo. Já a chantagem do irmão, não é. Na verdade, ela gosta do jogo catimbado, é assim que se sente bem. É como jogador de várzea que precisa chutar a canela. De tanto fazer bobagem, ela comete pênalti contra si e só sai perdendo. É recorrente".
Lembrei de meu pai. Por razões certamente bem diferentes das que embalam a amalucada da mulher do vizinho, papai recebia mal os momentos de alegria coletiva. Alguma coisa dentro dele parecia acusar um índice elevado de euforia à volta de si e, por alguma razão isso o incomodava. Mamãe vinha em socorro dele, embora fosse a principal prejudicada desses arroubos e ela própria uma pessoa difícil: "Ele perdeu o pai muito cedo. A família passou a viver com dificuldades depois disso. Ele era o último filho de nove e se sentia meio esquecido pelos irmãos e irmãs mais velhos. O Natal deve mexer com ele de forma negativa". É bem verdade que papai mantinha enorme coerência. Não era só no Natal que "cavava pênaltis" contra o próprio gol. No caso dele, qualquer feriado longo era motivo para que o tempo fechasse: Carnaval, Páscoa, São João, 7 de Setembro, 12 de outubro e 15 de Novembro. O humor começava a se deteriorar com uma semana de antecedência. A cozinheira já gritava lá de dentro: "É o primeiro estouro do São João". Não deve ter sido por outra razão que morreu horas depois do réveillon. Nunca duvidei de que quem planta, colhe.
Quanto a mim, o período de fim de ano só é mesmo penoso por conta do calor brasileiro. Se todas as pessoas com quem gosto de passar essa época pudessem ser teletransportadas para o frio europeu, eu teria o melhor Natal da vida. Aconchegadas pelo frio, elas veriam uma face de mim que para muitos permanece oculta já que no frio, minha temperatura interna sobe e me torno uma pessoa melhor. De qualquer forma, como não passo levar todo mundo comigo, de mim pelo menos tenho cuidado bem e não perco a ocasião de viajar. Se um grande pensador disse que o bom não é viajar, é ter viajado, eu sou da tese de que o melhor do Natal é quando ele ficou para trás. Isso porque todos os dias dão sempre espaço para novas celebrações e as pessoas não estão tão transtornadas e divididas, a ponto de abraçarem condutas absurdas. Como finalizou o passageiro, de forte sotaque cearense: "Ela passa o ano feliz comigo. Mas quando todo mundo está entrando num clima de relevar os defeitos alheios, ela vem dizer que estou gordo, como se nunca tivesse me visto". Ai que o outro rebateu, sábio: "O problema é dela com ela. Ela toma remédio?"
Com "Christmas Blues" ou sem, encare bem a semana que ela promete. E se for o caso, chute o pau da barraca sem pena e não reme só. O ano de 2019 está à espreita e promete.
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