O macho vulnerável
Não há momento mais desesperador nas milhares de horas de filme rodadas sobre a vida animal do que aquele que mostra um leão velho, sendo humilhantemente acuado pelas hienas. Desbastado de sua majestade por força da idade e do tônus decadente, eis que os predadores oportunistas alternam-se para miná-lo. Vem uma hiena e lhe morde o rabo. Antes que ele reaja, outra lhe mordisca o dorso. Outra mais ousada busca um ângulo na barriga. Espaventado, o leão ruge e ensaia dar uma patada no alvo mais próximo. Mas não consegue. As agressoras sabem que estão ganhando a luta por pontos. E que, minuto após minuto, o leão está fraquejando. Uma hora ele se sentirá cansado. E então não reagirá mais. Diante de mordidas incisivas, fechará os olhos e deixará que elas deem cabo dele e daquele suplício. Ao longe, a manada de leões sãos olha a cena e nada faz. Um ou outro ainda pensa em acorrer em socorro ao velho avô. Mas é da lei da savana que os mais fracos fiquem para trás, até para garantir a progressão da marcha dos demais. O instinto faz com que olhem para o amanhã da espécie. Em minutos, uma dúzia de hienas estará chafurdando no ventre estraçalhado do velho leão, eviscerando-lhe as glórias de quem um dia já ditou as regras a milhas de raio de seu calvário derradeiro. É muito triste.
Sabe-se lá que mecanismos de consciência regem a vida dos felinos para que eles se deem conta de que as coisas mudaram. Mas é lícito esperar que os instintos assinalem bem os momentos de passagem. Já no caso dos homens, a condição de ser dotados de uma inteligência superior lhes permite antever os cenários em que se desdobrará sua decadência. Não obstante as sinalizações que lhe passam a ciência e os documentários de vulgarização científica, é da espécie tentar ignorá-los o tanto quanto possível até que, pouco a pouco, os fatos comecem a apresentar as provas irrefutáveis de que o amanhã chegou. Nesse contexto, mesmo que o indivíduo seja poupado de uma doença cruel e progressiva, a vida em torno lhe oferecerá uns tantos marcos: no ônibus, já há quem queira ceder-lhe o lugar. Ao pagar meia-entrada no cinema, ninguém lhe pede identidade. Câimbras terríveis surgem nos momentos mais inconvenientes, levando-o a frustrar as expectativas de quem está ali a seu lado que, complacente, dirá "tudo bem, tudo bem. Foi muito bom, não se cobre tanto". O gatilho da idade será acionado ao relembrar um passeio e dele destacar as ladeiras tortuosas que subiu. Ou o chá que lhe fez companhia enquanto os amigos incursionavam pelas ruínas que ele evitou com medo de escorregar. No mais, esquece documentos, perde chaves e até dinheiro.
Mas o pior sentimento é o de vulnerabilidade social, a que o caso do leão se aplica de maravilha. Dia desses contava a um amigo que caminhava junto à grade de um jardim, não longe da estação ferroviária de Frankfurt, quando dois caras surgiram do nada. Perguntando se eu tinha isqueiro, era claro o intuito de saber se me assustara, se era vulnerável, se conectava as ideias, se falava alemão, enfim, se era um bom pitéu para seu repasto, no caso para me roubar a carteira e o que mais tivesse de valor. Reagi com placidez estudada, para ganhar a dianteira com fala sincopada e quase paternal. "Saiam daqui porque a polícia adora gente como vocês", e dei-lhes as costas, correndo riscos, mas certo de que o choque os desmobilizara. O mesmo disse o amigo de São Paulo. "Costumava ir beber umas cervejas a três quadras daqui, perto da PUC. Mas um dia percebi que os poucos meliantes do pedaço me estudavam. Avaliavam meus 68 anos, minha barriga, o passo trôpego e o tamanho da carteira. Desde então, só volto de carro. Já não dou aquele passeio que dissipava os eflúvios do álcool". Então ele me estendeu a mão por sobre a mesa e nos miramos nos olhos. "Cara, sei exatamente do que você está falando. Se não nos cuidarmos, entraremos céleres no ocaso do macho".
“Como os leões da National Geographic" – dissemos em uníssono entre gargalhadas. O bom dessa fase é que já não nos levamos muito a sério.
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