Beleza pura?
Em 2024 completam-se vinte anos da campanha da Real Beleza, patrocinada pela Dove. A partir dela, e impulsionada por movimentos formados nas redes sociais, avolumaram-se os reclamos pela inclusividade estética feminina. Esta foi razoavelmente abraçada pela propaganda e, há até pouco tempo, pelos desfiles de moda também. Porém, desde o ano passado, parece ter havido um refluxo dessa tendência, ao menos nas passarelas, com a volta das modelos magérrimas e dos cabelos alisados em detrimento dos naturais.
A indústria de vestuário tem lá seus motivos para preferir as muito magras. O primeiro deles, de cunho prático: é mais fácil conceber peças para corpos esguios e retos do que para curvilíneos. O papel das modelos é funcionar como um cabide, e não por acaso antigamente elas eram chamadas de manequins aqui no Brasil – um suporte para a roupa, tão somente. Outra razão é que ampla numeração numa grade de indumentárias pode fazer bem às relações públicas de uma marca, mas não necessariamente aos negócios. Uma das causas apontadas para os maus resultados da Old Navy, marca pertencente à varejista norte-americana GAP, em meados de 2022, foi o encalhe de peças de tamanhos incomuns de sua coleção "democrática". Por mais simpático que pareça oferecer vestuário PPP e GGG, a média de peso e altura da população passa longe dos extremos, evidentemente – e é justamente do consumidor médio que grandes cadeias de lojas dependem (aqui, em inglês).
Mas há motivos subjetivos também. E, para além do caráter pendular de determinados comportamentos e ideias, creio que a análise de uma podcaster de que "nunca chegamos à aceitação, ela chegou por meio do marketing. (...) [A] mídia se adequou às mensagens que estavam sobressaindo. (...) [T]udo foi construído de forma muito superficial", é procedente (Marie Claire, dezembro 2023, p. 108). Assim como a de uma historiadora, a respeito dos fios: "[o] que está na moda não é o cabelo natural, crespo, cacheado. Mas sim o cacho perfeito, definido, sem volume, sem frizz – impossível de ser alcançado (...)" (p. 110).
O fato é que nunca se deixou de encarar a beleza à semelhança da riqueza e do prestígio: como um bem escasso. E todas as afirmações em sentido contrário soaram mais como consolo do que convicção. Dado que vestuário e demais produtos de adorno pessoal são aspiracionais, é quase inevitável concluir que não desejamos ser apenas "a melhor versão de nós mesmos", como gosta de repetir a literatura de autoajuda, e sim a versão de outrem, muito melhor do que a nossa e que nos serve de referência. Se todo mundo é belo, ninguém é belo.
O resultado, a despeito de todos os esforços, é a continuidade da idealização de que tanto se queixam as mulheres. A esse respeito, o filósofo Gilles Lipovetsky foi taxativo: "Muitos falam em opressão da mulher pela moda, mas ela não oprime em nada. O que oprime são os padrões físicos". E continua, num recado que vale para outros setores menos alvejados pelas críticas tão comumente direcionadas a confecções e estilistas: "Mas não é apenas a indústria da moda que está por trás disso. É a da alimentação, da atividade física, da medicina estética...".
Dietas, estúdios de crossfit e aplicações de Botox estão aí para provar.
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