Novo sistema, velhas práticas

Brasil avançará com a reforma tributária, mas de forma tímida. Isso porque, apesar de normas atualizadas, receituários antigos não foram abandonados, sendo o principal deles o aumento da carga de impostos
A reforma tributária pode ser uma medida necessária para tornar o sistema brasileiro mais justo e eficiente

Um sistema tributário justo é aquele que reúne características como simplicidade e isonomia. O sistema brasileiro, além de injusto, é complexo. Resultado, sobretudo, do grande número de regras tributárias que impõem obrigações aos contribuintes. É verdade que eles possuem o dever de colaborar com a autoridade administrativa no sentido de declarar, prestar esclarecimentos e manter a escrituração dos livros contábeis, buscando viabilizar e racionalizar a fiscalização e a arrecadação dos tributos. Contudo, no Brasil, este controle ultrapassa os limites da razoabilidade. Dados do Banco Mundial demonstram, por exemplo, que as empresas brasileiras precisam despender em torno de 1.958 horas por ano para cumprir com as obrigações tributárias acessórias exigidas em lei; no México, que vem em segundo lugar no ranking, as exigências fiscais consomem um pouco mais de 300 horas anuais.

O modelo brasileiro de tributação sobre o consumo, instituído na década de 1960 e modificado com a Constituição de 1988, tornou-se ineficiente ao longo do tempo. Há pelo menos 30 anos o Brasil vive sucessivas tentativas de reforma, todas envolvendo um ponto em comum: o sistema tributário nacional precisa ser alterado. Em busca da simplificação do sistema fiscal, tramitam no parlamento duas propostas: a PEC 45/2019, que pretende unificar cinco tributos sobre o consumo de bens e serviços que hoje são cobrados pelos entes federativos — IPI, PIS, Cofins, ISS e ICMS seriam substituídos por dois impostos sobre o consumo, o Imposto sobre Bens e Serviços e o Imposto Seletivo para sobretaxar produtos e serviços que prejudiquem a saúde ou o meio ambiente. O mecanismo já funciona hoje com o IPI e até com o ICMS na taxação de bebidas. Com a aprovação da reforma, certamente será criada uma regra de transição para manter a arrecadação durante algum tempo, sobretudo em favor dos estados e municípios.

Já a PEC 110/2019 tem como aspecto principal a criação do Imposto de Bens e Serviços (IBS) — resultado da fusão do ICMS (imposto estadual) e do ISS (imposto municipal) — para estados e municípios. O ponto de convergência entre as duas propostas é a extinção de tributos que incidem sobre bens e serviços e a criação do Imposto sobre Valor Agregado (IVA). A unificação de legislação permite a simplificação na cobrança e uniformidade em todo o país. As duas propostas de emenda constitucional geram dúvidas e têm dominado os principais debates e discussões nos cenários político e econômico.

Para muitos empresários e entidades do setor, é a prioridade número um para a indústria, tratando-se da reforma estrutural mais importante para a recuperação econômica do país e imprescindível para garantir a competitividade das empresas. A criação de um imposto não cumulativo é importante, pois desonera o setor produtivo. Hoje, impostos "em cascata" oneram a produção de bens. Vários estudos mostram as vantagens para o país: recentemente, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) estimou, com base nas regras previstas no texto da PEC 110, o impacto da reforma tributária sobre as receitas dos entes subnacionais pelos próximos 20 anos. Com a alteração dos critérios de tributação e distribuição dos impostos, seria possível aumentar a arrecadação de todos os estados e de 98% dos municípios, além de impulsionar o crescimento econômico.

De acordo com o levantamento, se a reforma promovesse um efeito apenas moderado sobre a atividade econômica, haveria incremento de arrecadação para pelo menos 92% dos municípios. Excluindo os possíveis efeitos econômicos da reforma, quase 85% das cidades ampliariam as receitas tributárias. Para os pesquisadores, mesmo quando a regra de transição terminar daqui a 40 anos, somente 16 cidades poderiam experimentar uma queda de arrecadação, municípios em que a receita média per capita atual supera o triplo da média nacional. Para o cenário específico da região Sul, as repercussões seriam semelhantes às dos outros estados do Brasil — embora com algumas particularidades. Há aqui uma ampla diversidade econômica, abrangendo setores como agricultura, indústria e serviços. De forma mais acentuada do que em outros locais do país, e com uma extensa fronteira com países vizinhos, como Argentina e Uruguai, o que influencia o comércio exterior e a competitividade das empresas. A reforma tributária poderia também trazer maior clareza e uniformidade nas regras de importação e exportação, facilitando as transações comerciais e reduzindo a burocracia. Todos esses pontos indicam um quadro promissor. No entanto, com essas medidas, o cenário ideal se aproxima? Passaremos a ter um ambiente de negócios mais vantajoso? Nossas empresas serão mais competitivas? Creio que vamos avançar, mas de forma tímida. Isso porque, apesar de um "novo sistema", velhas práticas não foram esquecidas, sendo a principal delas o aumento da carga tributária. Se a proposta da PEC 110 for aprovada, a nova contribuição terá uma alíquota de 12%. Se, por exemplo, a legislação de outros tributos, como o IPI, o ICMS, e o ISS forem unificadas, estima-se que a alíquota final do IVA alcance 35%. Ou seja, passaremos a ter a maior tributação do mundo sobre o consumo, segundo dados coletados em 2018 pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Os prestadores de serviço optantes do Lucro Presumido, por exemplo, seriam os mais prejudicados, já que passariam a recolher o PIS e Cofins em uma alíquota única de 12%, bem superior às atuais 0,65% e 3%. Onerar sobremaneira o consumo o desestimula, assim como a produção. Desonerar a folha de pagamento e criar possibilidades de geração de créditos, como na aquisição de mão de obra, por exemplo, são medidas que precisam ser debatidas. Por outro lado, a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) — que unifica Cofins e Cofins-Importação, PIS e Cide-Combustíveis, arrecadados pela União — formará o IVA Federal. O IBS terá uma legislação única para todo o país, exceto a alíquota, que será fixada por cada ente federativo. Juntos, eles representaram quase 38% da arrecadação em 2021. O IBS seria administrado em conjunto por estados e municípios, o que preserva a autonomia de cada ente federativo para decidir o percentual da alíquota. 

A proposta prevê que os atuais impostos sejam substituídos pelos novos até 2032 e mantenham a arrecadação percebida hoje em proporção do PIB. Mas o imposto será dual — ou seja, uma parcela gerida pela União e outra administrada por estados e municípios. Entendo que o imposto sobre o consumo não pode ser dual, pois na medida em que se confere o gerenciamento de uma parcela do tributo para a União e outra para estados e municípios, abre-se espaço para que os entes políticos criem regras e normas diferentes e divergentes, dentro de suas competências legislativas. Com o imposto dual, criam-se estruturas diferenciadas e os estados não terão submissão a essa gestão reguladora do governo federal. O modelo ideal e que é utilizado nos sistemas tributários mais evoluídos é o imposto único, gerenciado por apenas um ente político. Um ponto crucial a ser considerado é a implementação do "cashback", medida que favorecerá aqueles com menor capacidade econômica e contributiva. Essa iniciativa visa à restituição imediata do novo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) a grupos específicos da população em situações particulares. Especialistas ouvidos pelo grupo de trabalho da reforma tributária da Câmara demonstraram preocupação com o mecanismo de devolução do novo imposto para os mais pobres. A alegação é de que a restituição apenas para as famílias registradas no Cadastro Único (CadÚnico) pode deixar de fora grupos importantes, como as empregadas domésticas.

A ideia é devolver o tributo apenas para produtos da cesta básica, mas somente para os mais carentes. Atualmente, esses produtos têm menos tributação sobre o consumo. Com o novo imposto, nenhum produto ficaria livre da taxação, o que torna necessária a devolução e beneficia a parcela da população com menor capacidade econômica e contributiva. No Rio Grande do Sul, existe um programa semelhante chamado "Devolve ICMS" (foto abaixo) que prevê a devolução do imposto para famílias de baixa renda. O programa gaúcho é citado pelo assessor do Ministério da Fazenda, Rodrigo Orair, como um exemplo de eficiência para a proposta nacional, beneficiando 617 mil famílias de baixa renda em todo o estado. Outro aspecto que exige atenção é a previsão de que o IBS seja cobrado no local de consumo e que não seja cumulativo — ou seja, o imposto pago em uma fase anterior da produção de um bem será descontado na fase seguinte. Com essa sistemática, os estados não terão mais vantagens em reduzir impostos para atrair investimentos, já que o tributo não será cobrado na produção — será criado um Fundo de Desenvolvimento Regional para atacar desequilíbrios regionais. A previsão é de que ele seja abastecido com recursos da União. Aqui surge um problema, já que existem as regras do arcabouço fiscal que limitam os gastos do governo. Outro ponto que precisa ser debatido é como ficarão os benefícios fiscais. Permanecem? Serão suprimidos parcialmente?

Com o presumido fim da guerra fiscal, o Sul precisará investir pesadamente em infraestrutura

A proposta de reforma tributária inclui medidas que buscam incentivar a preservação do meio ambiente e a justiça fiscal. Nesse sentido, está prevista a ampliação do IPVA para veículos terrestres e aquáticos, com a possibilidade de alíquotas menores para aqueles que são menos poluentes, por exemplo. Além disso, o ITCMD, imposto estadual sobre doações e heranças, será progressivo, ou seja, terá alíquotas mais altas para valores maiores, garantindo uma maior equidade no pagamento. Vale destacar também que os benefícios fiscais da Zona Franca de Manaus e do Simples Nacional serão mantidos.

A reforma tributária está prevista para ter sua votação iniciada ao longo de julho e trará consigo a unificação da legislação tributária para todos os estados. Lideranças políticas e do setor produtivo gaúcho reconhecem a necessidade de mudança nas regras fiscais. A preocupação é com os pontos que devem ser alterados para simplificar a cobrança de imposto no país, provocando uma eventual perda de receitas e o fim da guerra fiscal entre os estados. Aliás, com esse presumido fim, uma vez que a legislação e as alíquotas do novo imposto serão isonômicos para todos os Estados da Federação, os estados do Sul precisarão investir pesadamente em infraestrutura para atrair novas empresas. Esse cenário sem autonomia para gerar e oferecer incentivos fiscais afetará especialmente o Rio Grande do Sul, por estar no extremo meridional do Brasil. Afinal, qual seria o diferencial do estado em relação aos outros? Hoje estamos atrás de Santa Catarina e Paraná em investimentos e qualidade na educação. Conseguiremos aprimorar a mão de obra? Em função da nossa localização geográfica, quase tudo o que produzimos é mais caro. Provavelmente, precisaremos olhar mais para o Mercosul. No entanto, nossas empresas e indústrias estão preparadas para isso? São questões que se impõem não apenas para o caso gaúcho, mas também para toda a região. Apesar das mudanças promissoras, ainda há muitas dúvidas em diversos setores. Dentro do agronegócio, setor tão essencial para a economia do Sul, os produtores estão especialmente preocupados com a possibilidade de taxação das exportações e com a alíquota uniforme para o IBS, que pode girar em torno de 25%. É importante estar atento a essas questões e buscar informações precisas para se preparar para as mudanças que virão.

A reforma tributária pode ser uma medida necessária para tornar o sistema brasileiro mais justo e eficiente. É importante que ainda sejam realizados estudos e debates para que as mudanças sejam implementadas de forma adequada e sem prejudicar a população mais vulnerável. Além disso, é fundamental que haja transparência e participação da sociedade no processo de elaboração e implementação para que o país tenha um sistema tributário mais justo e equilibrado, capaz de estimular o crescimento econômico e a geração de empregos.

*Advogado especialista em tributos e coordenador da área tributária da Biolchi Empresarial

Esse conteúdo integra a edição 344 da revista AMANHÃ, publicação do Grupo AMANHÃ. Clique aqui para acessar a publicação online, mediante pequeno cadastro.

Veja mais notícias sobre BrasilEconomiaTributos.

Veja também:

 

Comentários:

Nenhum comentário feito ainda. Seja o primeiro a enviar um comentário
Visitante
Sábado, 23 Novembro 2024

Ao aceitar, você acessará um serviço fornecido por terceiros externos a https://amanha.com.br./