"Eu, robô" ou "eu, humano"?

O preço da íris no Brasil digital
Para o especialista Luiz Carlos Gomes Filho, dados pessoais precisam valer mais do que um boleto em atraso

Após ser proibida de operar em quase todos os países da União Europeia por potencial violação ao Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR), a Tools for Humanity, criadora do projeto World ID, encontrou no Brasil terreno fértil para implementar uma ferramenta de escaneamento de íris em troca de criptoativos. E isso diz mais sobre a nossa cultura do que podemos perceber em uma primeira leitura. Com uma proposta que mais parece ter saído de um roteiro de ficção científica, o projeto World ID é apresentado como uma "prova de vida humana" para um mundo prestes a ser dominado pela era da Inteligência Artificial. A premissa é relativamente simples: escanear a íris de pessoas humanas para diferenciá-las de máquinas ou projeções virtuais. Com essa pitada de roteiro estilo "Eu, Robô", de Asimov, a empresa aposta em um futuro próximo onde distinguir o virtual e o real vai se tornar uma tarefa cada vez mais difícil.

Apesar da distopia envolvida, o aspecto mais controverso – e preocupante, sob um ponto de vista social — é que a divulgação do programa não foi baseada nessa visão de futuro tecnológico, mas sim em um grande sistema de recompensas financeiras. Logo, a motivação central das pessoas não estava no manifesto tecnológico, e sim na promessa de benefício econômico imediato. Coincidentemente, ou não, a World ID, depois de impedida de realizar os escaneamentos em parte dos países europeus, encontrou em países menos desenvolvidos socioeconomicamente a oportunidade ideal para o seu modelo de negócios. Aqui no Brasil, em troca do escaneamento, cada voluntário receberia o equivalente a R$ 750, em média, em moedas digitais emitidas pela própria empresa. A ideia de um aparente dinheiro fácil capturou mais de 400 mil globos oculares antes de a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) determinar a suspensão de qualquer oferta de recompensa financeira, ainda em janeiro.

Isso nos mostra que os desafios socioeconômicos de um país como o Brasil refletem, também, no sucesso de uma cultura que promove a privacidade e o tratamento adequado de dados pessoais. As desigualdades estruturais tornam as pessoas mais suscetíveis a aceitar condições que não compreendem completamente em troca de alívios financeiros imediatos. Inevitavelmente, esse contexto social, aliado a uma alarmante assimetria informacional sobre o que são nossos dados pessoais, porque protegê-los e, ainda mais importante, o que pode ser feito com eles, interferem e influenciam a decisão de ceder, ou não, dados biométricos em troca de algum benefício direto e tangível.

Não fosse o bastante, a coleta de dados biométricos sem muito lastro informacional, e baseada em um discurso vago de confiança e construção de um futuro digital próspero e global conta com um dilema pouco mencionado pela Tools for Humanity: estamos lidando com a íris humana – um dos dados biométricos mais íntimos e únicos, comparável apenas ao DNA. Não é uma senha, que pode ser alterada a qualquer momento, ou um cartão de crédito, que pode ser cancelado em caso de comprometimento das informações. Em outras palavras, a decisão de compartilhar a íris é irreversível: uma vez feito, está feito. Não há como voltar atrás. E isso faz com que a iniciativa carregue várias camadas de complexidade.

Ao mesmo tempo em que o clima leve de viver a vida nos caracteriza e destaca enquanto nação, carregamos o pesado fardo da desinformação disfarçada de piada. Grande parte dos conteúdos viralizados nas redes sociais adota um tom humorístico sobre a "venda da íris". Poucos são os que provocam uma reflexão ou questionam os objetivos da Tools for Humanity, uma recém-criada organização privada sobre a qual muito pouco se sabe. Essa atitude, por si só, escancara a fragilidade do assunto no Brasil, onde, apesar da existência da LGPD, o real potencial – para o bem, ou para o mal – daquilo considerado como dado pessoal ainda não é amplamente compreendido.

Vivemos uma época em que as tecnologias avançam de forma exponencial e rompem barreiras que, até pouco tempo atrás, habitavam somente o nosso imaginário e bons roteiros de ficção científica. A leveza é essencial para sobrevivermos em uma sociedade que jamais teve um acesso tão instantâneo à informação, e jamais se viu tanta mudança acontecendo ao mesmo tempo. Mas é preciso, também, ter os pés no chão e a consciência de que nossos dados pessoais, especialmente os sensíveis e biométricos, precisam valer mais do que um boleto em atraso.

É preciso tratar o Brasil como Brasil, reconhecer as desigualdades sociais e investir em campanhas massivas de conscientização para todas as camadas. Não existe reflexão sobre uma realidade a que se desconhece. É urgente que a sociedade, empresas e órgãos reguladores adotem uma postura mais vigilante, ética e transparente no tratamento de dados pessoais. Apenas assim será possível garantir que episódios como esse sirvam não apenas como alertas, mas como pontos de partida para um futuro em que a proteção de dados seja tratada como um direito inegociável.

*Head de direito digital na RMM Advogados

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Terça, 18 Março 2025

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