"Eu, robô" ou "eu, humano"?
Após ser proibida de operar em quase todos os países da União Europeia por potencial violação ao Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR), a Tools for Humanity, criadora do projeto World ID, encontrou no Brasil terreno fértil para implementar uma ferramenta de escaneamento de íris em troca de criptoativos. E isso diz mais sobre a nossa cultura do que podemos perceber em uma primeira leitura. Com uma proposta que mais parece ter saído de um roteiro de ficção científica, o projeto World ID é apresentado como uma "prova de vida humana" para um mundo prestes a ser dominado pela era da Inteligência Artificial. A premissa é relativamente simples: escanear a íris de pessoas humanas para diferenciá-las de máquinas ou projeções virtuais. Com essa pitada de roteiro estilo "Eu, Robô", de Asimov, a empresa aposta em um futuro próximo onde distinguir o virtual e o real vai se tornar uma tarefa cada vez mais difícil.
Apesar da distopia envolvida, o aspecto mais controverso – e preocupante, sob um ponto de vista social — é que a divulgação do programa não foi baseada nessa visão de futuro tecnológico, mas sim em um grande sistema de recompensas financeiras. Logo, a motivação central das pessoas não estava no manifesto tecnológico, e sim na promessa de benefício econômico imediato. Coincidentemente, ou não, a World ID, depois de impedida de realizar os escaneamentos em parte dos países europeus, encontrou em países menos desenvolvidos socioeconomicamente a oportunidade ideal para o seu modelo de negócios. Aqui no Brasil, em troca do escaneamento, cada voluntário receberia o equivalente a R$ 750, em média, em moedas digitais emitidas pela própria empresa. A ideia de um aparente dinheiro fácil capturou mais de 400 mil globos oculares antes de a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) determinar a suspensão de qualquer oferta de recompensa financeira, ainda em janeiro.
Isso nos mostra que os desafios socioeconômicos de um país como o Brasil refletem, também, no sucesso de uma cultura que promove a privacidade e o tratamento adequado de dados pessoais. As desigualdades estruturais tornam as pessoas mais suscetíveis a aceitar condições que não compreendem completamente em troca de alívios financeiros imediatos. Inevitavelmente, esse contexto social, aliado a uma alarmante assimetria informacional sobre o que são nossos dados pessoais, porque protegê-los e, ainda mais importante, o que pode ser feito com eles, interferem e influenciam a decisão de ceder, ou não, dados biométricos em troca de algum benefício direto e tangível.
Não fosse o bastante, a coleta de dados biométricos sem muito lastro informacional, e baseada em um discurso vago de confiança e construção de um futuro digital próspero e global conta com um dilema pouco mencionado pela Tools for Humanity: estamos lidando com a íris humana – um dos dados biométricos mais íntimos e únicos, comparável apenas ao DNA. Não é uma senha, que pode ser alterada a qualquer momento, ou um cartão de crédito, que pode ser cancelado em caso de comprometimento das informações. Em outras palavras, a decisão de compartilhar a íris é irreversível: uma vez feito, está feito. Não há como voltar atrás. E isso faz com que a iniciativa carregue várias camadas de complexidade.
Ao mesmo tempo em que o clima leve de viver a vida nos caracteriza e destaca enquanto nação, carregamos o pesado fardo da desinformação disfarçada de piada. Grande parte dos conteúdos viralizados nas redes sociais adota um tom humorístico sobre a "venda da íris". Poucos são os que provocam uma reflexão ou questionam os objetivos da Tools for Humanity, uma recém-criada organização privada sobre a qual muito pouco se sabe. Essa atitude, por si só, escancara a fragilidade do assunto no Brasil, onde, apesar da existência da LGPD, o real potencial – para o bem, ou para o mal – daquilo considerado como dado pessoal ainda não é amplamente compreendido.
Vivemos uma época em que as tecnologias avançam de forma exponencial e rompem barreiras que, até pouco tempo atrás, habitavam somente o nosso imaginário e bons roteiros de ficção científica. A leveza é essencial para sobrevivermos em uma sociedade que jamais teve um acesso tão instantâneo à informação, e jamais se viu tanta mudança acontecendo ao mesmo tempo. Mas é preciso, também, ter os pés no chão e a consciência de que nossos dados pessoais, especialmente os sensíveis e biométricos, precisam valer mais do que um boleto em atraso.
É preciso tratar o Brasil como Brasil, reconhecer as desigualdades sociais e investir em campanhas massivas de conscientização para todas as camadas. Não existe reflexão sobre uma realidade a que se desconhece. É urgente que a sociedade, empresas e órgãos reguladores adotem uma postura mais vigilante, ética e transparente no tratamento de dados pessoais. Apenas assim será possível garantir que episódios como esse sirvam não apenas como alertas, mas como pontos de partida para um futuro em que a proteção de dados seja tratada como um direito inegociável.
*Head de direito digital na RMM Advogados
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