Como vejo o aborto
Tenho lido na imprensa que está sumamente acalorado o debate sobre a legalização do aborto na Argentina. E, evidentemente, o tema tem mobilizado as famílias de ativistas de vocação dita libertária mundo afora que, como é de se esperar, fecham questão com os que estão a favor e, é claro, demonizam quem é contra. Acho que está fora de qualquer dúvida que se trata de um problema de saúde pública. E que não se pode deixar que mulheres – e, sobretudo, meninas – morram por conta das sinistras clínicas clandestinas que praticam o aborto ao arrepio de quaisquer normas de dignidade, higiene e segurança. De que forma se lavrará uma legislação pertinente, não saberia dizer. Mas é evidente que o chamado bom senso não pode presidir o debate isoladamente mesmo porque trata-se de um critério muito subjetivo. Quem é que acha que não tem bom senso?
Seja como for, poucas questões nos remetem tanto a uma reflexão pessoal quanto esta. Mesmo porque imagino que ela passe por mudanças de percepção ao longo da vida. Em meu caso, quando estava na casa dos 20 anos, e via colegas de faculdade abortarem a três por quatro na entrada dos anos 1980, me parecia natural que assim fosse. Uma amiga querida veio certa feita me segredar que passara pela experiência na semana anterior. Era gritante que estava emocionalmente alquebrada. Ao cabo de uns dias, as nuvens começaram a se dissipar e fiquei contente por ela. Na minha compreensão de mundo e de vida (sic), o corpo era dela e ela haveria de saber a hora de reter um feto, fruto de um namoro menos aleatório do que aquele que tivera. Quando muito, me parecia pura burrice que não tivesse tomado precauções, mas o fato em si não me tocava.
Passaram-se os anos. Já quase aos 40, ao cabo de uma relação fortuita, recebi um telefonema de terras distantes em que alguém me dizia achar que estava grávida. Fui acolhedor e receptivo, tanto quanto se pode ser num momento desses. Ora, levando-se em conta a extrema superficialidade dos momentos vividos a dois, é claro que deixei escapar que achava aquilo uma imprudência, que respeitaria qualquer decisão que ela tomasse. "Então você não quer que eu tenha esse bebê?", perguntou. "A decisão é sua", foi a fórmula que encontrei. O telefone não voltou a tocar. Anos mais tarde, tentei vê-la em sua Polônia natal, mas ela saíra de férias. A irmã me falou: "Viajou com Bolek, o filho dela". Ora, quando nos encontramos, Bolek já tinha cinco anos. Estava evidente que fora alarme falso. Se a solução foi outra, ela não quis me contar e jamais saberei.
Já perto dos 50, uma namorada firme me anunciou a novidade. Sim, estava grávida. "Ótimo, eu disse, vamos em frente, vai fazer bem à nossa relação". Mas foi ela quem não quis. Alegou que já não tinha mais idade para isso e que este capítulo já fora dado como encerrado em sua vida. O que eu poderia fazer? Ir a uma delegacia, como certa vez foi um amigo meu? Não. Acatei a contragosto a decisão, por continuar entendendo que era uma decisão soberana dela, tal como pensava na juventude. E, pragmático, concluí que ela tinha pelo menos 51% da preferência da sociedade, digamos assim. Logo não me cabia a palavra final. O procedimento transcorreu normalmente, a ele se sucederam dias de algum abatimento, mas pouco a pouco a vida retomou a normalidade. Nunca me passaram pela cabeça injunções de natureza ética. E muito menos religiosas.
Continuo o velho ateu de sempre, abandonado no mundo à minha imensa solidão espiritual, mas sinto que algo de fundamental mudou. Aos 60 anos, a noção do aborto me repugna pela primeira vez na vida. Se me choca – e como – ver na televisão meninas de 14 anos com filhos recém-nascidos (a marca por excelência do subdesenvolvimento crônico e escrachado), só é maior o embrulho que me dá a ideia do aborto. Pouco se me dão as noções teológicas sobre a consistência ou não da vida humana num grãozinho de arroz. Isso para mim é debate bizantino e minha indiferença ao que defende a Teologia é abissal. Mesmo porque padre, em tese, não tem filho. Mas alguma coisa mudou, repito. Jamais votaria contra a legalização do aborto. Mas tampouco votaria a favor, sem que interpusesse vários senões. Essa farra de feto no ralo me dá asco e horroriza.
Que me desculpe quem pensa de outra forma. Quem vos fala é um homem de 60 anos que não tem medo de admitir que já foi mais evoluído, se é que isso é evolução. O que posso fazer se sou tomado por esse ranço conservador? Mentir, para fingir uma empatia que não sinto? Nem amarrado, seria ridículo e eu não poderia me olhar no espelho. Em meio a todo esse debate, cada vez que vejo um bebê, penso no que nunca tinha pensado antes. Assim é a vida.
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