Vozes da África meridional
I
"Sou Manolo. Nasci e cresci em Sevilha e lá quero morrer. Isso aqui é de uma beleza de tirar o fôlego. Será que o Apartheid ajudou a erigir algumas dessas maravilhas ou só estamos condicionados a ver o lado ruim? Não sou de direita, mas a minha mulher acha que sim. Ela estudou com Felipe González, logo um pouco rosada há de ser, não é? Ontem quase me matou porque eu disse a todos no ônibus que felizmente as estradas foram construídas pelos brancos. É claro que não precisava ter sido à custa de humilhar os pretos e de lhes tornar a vida irrespirável. Mas contra fatos, não há argumentos. Mesmo durante a segregação racial, os negros daqui tinham talvez o melhor nível de vida da África, sabia? Já é alguma coisa, não? Se duvidar, permita-me um palpite sensível, talvez vivam melhor do que os pretos num país como o Brasil. Sei que vocês alegam não ter racismo por lá. Quem reconhece ter? Conheço espanhóis que não suportam os mouros em geral, mas abrem um sorriso para o primeiro marroquino que aparece. Enfim, que minha mulher não nos ouça. Minha língua destrava com o vinho, sabia? Aliás, não gostei desse tal Pinotage? O que te pareceu? Uma coisa é certa: o guia está aqui menos para nos educar e mais para vender as garrafas dele, percebeu?"
II
"Pode me chamar de Austin. Estou aqui na Delaire Graff há três anos e amo meu trabalho. Cheguei de Zimbabwe numa situação bem ruim, mas tratei de evitar Johanesburgo. Lá tem muita máfia nigeriana e até moçambicana. Gosto da montanha. Morando a 30 quilômetros daqui, agarrei essa chance e hoje piloto várias vezes ao dia visitantes da vinícola nesse carrinho de golfe, que é como se fosse meu filho. Vá visitar os lagos de meu país um dia. Mas não se aventure a ir de ônibus daqui. Leva 48 horas e o senhor não gostaria. Harare é talvez a capital mais segura da África e não há o que temer, apesar da pobreza. Nosso patrão chega aqui de helicóptero uma vez ao ano. Ele mora na Suíça. Veja que bem aqui à esquerda, podemos receber até cinco helicópteros de uma vez. Ele é um dos grandes negociantes de diamantes do mundo. Se tivesse chegado aqui entre fevereiro e março, deixaria que chupasse quantas uvas quisesse porque é a época da colheita. Essas uvas Chardonnay não estão dando muito certo. Mas o patrão disse que temos de esperar um pouco. Das onze línguas faladas aqui, me viro bem em cinco. Brasil...o que aconteceu com o futebol de vocês? Por que ter de jogar como os europeus? Não gosto de rúgbi. É físico demais, não tem arte."
III
“Minha opinião é a de que os guias de viagem estão se tornando muito mais poderosos do que deveriam. Era para ser o contrário porque hoje todo mundo tem acesso à informação. Por outro lado, todo mundo quer também informação mastigada, prontinha para engolir. Como os bebês-pinguins. Então quando um guia de carne e osso começa a falar platitudes, isso tem poder de lei. Pode ver que todo mundo repete aquelas formuletas quase com as mesmas palavras. Dizem que a Table Mountain é uma das sete maravilhas naturais do mundo, e alguns chegam até a citar quais as outras seis. Para brasileiros é fácil porque Iguaçu e a Amazônia são duas delas. Ninguém parece questionar a idiotia que está por trás desse critério. Ora, se a Montanha da Mesa é uma, por que o Corcovado não seria? Ou o Pão de Açúcar? É catalogação trash, só por didatismo para tolos. Mas como condenar se até a imprensa age assim, e se alimenta à base de press releases prontinhos? Não há mais investigação no terreno. Já fui correspondente no México. Na época, eu era uma das únicas mulheres que se embrenhavam na confusão dos cartéis e, é claro, meu passaporte americano ajudava. Sou argentina e meu marido é de Atlanta. Mas ele já morreu. Foi aqui que passamos a lua de mel. Fiz questão de voltar. E o Brasil? Aquele louco vai até o fim?"
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