Paris como nunca vi

O corpo está aqui, mas o coração no Brasil

Quem ouviu o discurso de Macron na última segunda-feira sentiu-se num filme de guerra de tremendo realismo. A maioria das pessoas chorou e se abraçou, todas convencidas de que fazíamos face a um inimigo de rara virulência, pronto para colocar o sistema de joelhos – o que tem conseguido até agora. O desespero se reflete no uivo das ambulâncias pelas ruas vazias, nos depoimentos sucessivos dos médicos que aparecem na televisão dizendo para não sairmos de casa, salvo em necessidade extrema e, mesmo assim, documentados e munidos de boas razões, sob pena de salgada e implacável multa.

Como estou? Dividido. O corpo está aqui – onde também tenho muitos amigos –, mas o coração está no Brasil, onde temo pela vida de meus entes queridos diante de uma forma no mínimo heterodoxa de se enfrentar um inimigo dessa envergadura. Trato de cuidar de mim tanto quanto possível, sem deixar de ajudar os que não podem se ajudar sozinhos, tudo dentro dos limites de alguma prudência. Asmático, sexagenário e obeso, sei que se for internado com os sintomas do Covid-19, não farei jus a um respirador mecânico, para que os mais jovens possam ser atendidos. Por princípio, não questiono o que me atinge diretamente.

Em casa de um amigo, leio, tento comer e beber pouco – que é a parte mais difícil porque as refeições são o grande momento –, cantamos e lemos passagens literárias bonitas. Espero que essa revirada de valores, no bojo da morte de dezenas de milhares – por baixo –, nos faça descobrir um mundo mais solidário e menos consumista. Talvez as pessoas se apercebam de que não precisamos de tanto para ser felizes e para viver. O confinamento deve ser um pesadelo para casais disfuncionais, para adolescentes e a maioria de nós que queria aproveitar os primeiros raios da primavera. Oxalá sobrevivamos.

Quando a primavera de 2021 chegar, avaliaremos o que teremos apendido de tão amargos tempos. Mas é preciso sobreviver. Essa é a resistência que conta. O resto é balela conhecida. Coragem. 

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Sábado, 23 Novembro 2024

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