O drama como eu vejo
1 – As cenas do último domingo no aeroporto de Makhachkala, Daguestão, em que uma multidão vandalizou o terminal à procura de passageiros judeus que chegavam de Israel, foram para mim o presságio mais preocupante e mais sintomático de tudo o que pode acontecer de pior no bojo do ataque do Hamas em 7 de outubro. Por que ir para tão longe do teatro de operações militares, a mais de 1500 quilômetros? Por que sair do deserto para as fronteiras do permafrost? Porque toda vez que o antissemitismo varre pontos remotos do antigo Império Russo, toda vez que se orquestram ações de perseguição turbinadas pela histeria desenfreada, toda vez que esses fenômenos acontecem em lugares de que a maioria das pessoas jamais ouvir falar, nós nos aproximamos da forma contemporânea de um "pogrom", uma palavra famigerada na vida judaica.
2 – Quem assistiu recentemente ao filme sobre Golda Meir, todo ele centrado num flagrante equívoco de Inteligência, talvez só superado por este último, haverá de se lembrar da cena em que ela diz a Kissinger que jamais esqueceu o olhar de medo do pai, acuado com a família, diante da fúria desatada dos pogroms. O que ela não disse ali, mas que reforça a sensação de insegurança de uma comunidade – qualquer que seja ela – é que o pogrom quase sempre contava com a permissão tácita da autoridade constituída. Ou seja, quem era atacado não tinha a quem recorrer. Os homens de uniforme olhavam para o outro lado. Domingo, à porta de um avião, uma aeromoça gritava em desespero: "Não tem judeus aqui". Resta perguntar: e se houvesse, o que aconteceria? Seriam trucidados? Em nome do quê? Da nacionalidade? Do credo? Dos "palestinos"?
3 – A contaminação pelo ódio está disseminada. Nos tempos da Covid, todo dia ouvíamos no noticiário uma nota sobre a taxa de propagação do vírus. Cada infectado provocava mais quatro doentes. É inimaginável o quanto a contaminação galopa em tempos de ódio. Nesse contexto, temo que os últimos 40 anos venham a ser lembrados como alguns dos melhores vividos pelos judeus em todo o mundo. Ou seja, temo que as próximas décadas testemunhem um retrocesso no progresso civilizacional que vínhamos registrando desde o fim da Segunda Guerra, em graus variados de país a país. O antissemitismo como libelo cultural e ideológico é mais do que escandaloso. É regressivo e criminoso porque assinala um flerte com a barbárie. O que tínhamos até o dia 7? Um cenário auspicioso para a paz e sumamente adverso para o Hamas e o Irã.
4 – E por que? Porque sinalizava com o esmagamento, por vias indiretas, dos sicários que manipulavam o destino de centenas de milhares de miseráveis. E agora? Ora, foi justamente em função deste alinhamento virtuoso que a milícia executou o que já estava meticulosamente planejado, o que causará um retrocesso sem precedentes no xadrez diplomático global. Nesse ponto, a ação do Hamas foi vitoriosa. O pensamento miliciano não mede vidas. Por acaso o traficante mede custos? Não. Se houver trinta apreensões de droga e apenas um ou dois carregamentos passarem, a lucratividade do negócio está garantida. O que importam as mulas que apodrecem nas prisões de todo o mundo? Nada. O que importam para os degenerados do terror as vidas destroçadas quando a indústria da morte é o seu fundo de comércio? Zero. Ou melhor, elas são seu trunfo e glória.
5 – A cena do Daguestão não está precificada. Makhachkala fica no mar Cáspio, a dois passos do Azerbaijão. Leio que os "judeus de montanha" já formaram em Derbent uma comunidade de fala farsi. Da última vez que estive em Israel, aliás, fiquei maravilhado com um grupo de israelenses que viajavam regularmente para Dushanbe, Astana, Bishkek, Tashkent e Baku. Iam a negócios e um ou outro arranhava o turco, língua franca na região. Ora, quando há fluxo de comércio, quando há contato humano, os estereótipos se diluem. O cidadão de passaporte israelense, depois de décadas de cauterização, começava a não mais ser identificado a priori como um judeu. Mas como um parceiro – fornecedor ou comprador –, e talvez como um amigo possível. Esse é o ponto de partida que todos nós perdemos. É isso que torna o retrocesso calamitoso.
6 – Também é terrível que se calcifique na mente e no coração dos judeus a convicção de que só há um lugar em que eles podem se sentir em segurança, e que este lugar é em Israel. Compete aos não-judeus provar que isso não é verdade. Isso faz do momento atual dificílimo. Em "O Halo Âmbar", Hana defende esta tese junto ao tio que vive em Bnei Brak. Em Israel, a guerra pode vir de todos os lados, para além da conflagração interna. Pode vir do Norte, do Leste e até do Sul. Tenho horror jurado a religiosos investidos de liderança política. Conhecemos isso no Brasil. Há décadas, testemunhamos o que eles representam no Irã. Ontem Putin acusou Zelensky de apoiar os fanáticos. Erdogan chama Netanyahu de terrorista. Montados em seus fundamentalismos, todos eles riem estrepitosamente do sofrimento de milhões. Nós conhecemos bem o enredo.
7 – Nós vimos aqui mesmo no Brasil que para fugir do indiciamento por ladroagem, eles flertam com os tribunais penais para salvar suas famílias – geralmente formadas por filhos pusilânimes, desertores, atravessadores e ladrões. É verdade ou não? Já não tenho mais idade nem energia para tentar salvar o mundo. Mas tenho bastante para não ficar calado diante do que indigna. Nem tampouco para, como ventríloquo, dizer o que acham que eu devo dizer. Não sou redator de panfleto nem pena de aluguel de manifesto. Só digo o que me passa pelo coração e que resiste minimamente ao pouco que eu consigo entender. E isso me basta. Se não basta ao mundo e às facções, tanto pior. E o que isso tem a ver com o ocorrido no Daguestão? Tudo. Temos de torcer ardentemente pelo fim dessa guerra. Mas, em igual medida, que ela erradique o terror.
8 – Temos pela frente várias etapas de acerto de contas. Primeiro, para lá da fronteira. Depois, em casa. Antes que o mal se propague numa escala que parecia esquecida, torço para que não se repitam as cenas de Makhachkala. O dano já é imenso do jeito que está. A palavra pogrom voltou à ordem do dia numa região onde fez história e deitou raízes. Que fique por aí.
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Comentários: 1
Fernando, muito esclarecedor.