Nada será como antes? (II)
Semana passada escrevi que não acredito em profundas mudanças comportamentais ao fim definitivo do distanciamento social. E, sim, em pequenas alterações de hábitos, mais pontuais. Algumas específicas para o período de transição para a normalidade; outras, quem sabe, com potencial de permanecerem. Seguem minhas apostas:
1. É inevitável que nos tornemos um pouco neuróticos com limpeza e higiene. O mundo, de uma hora para outra, tornou-se mais hostil, potencial portador de microrganismos invisíveis capazes de nos enfiar em UTIs por semanas. Por isso, locais públicos de grande circulação, como ônibus, supermercados, restaurantes, aviões, academias, clubes e hotéis, terão de investir em demonstrações evidentes de que oferecem segurança sanitária aos usuários – nem que, para isso, parte da qualidade da experiência inevitavelmente se perca (exemplos aqui e aqui; e uma aposta interessante aqui). Até carros poderão incorporar este como um insólito argumento de venda no futuro imediato, veja só.
2. Mesmo assim, a desconfiança tende a permanecer por algum tempo, como bem já projetam os restaurantes. Por isso, serviços de entrega em domicílio, seja lá do que for, não devem ter arrefecimento da demanda tão abruptamente com o fim da quarentena.
3. Contratantes de seguros, especialmente de vida e empresariais, ficarão mais atentos a existência de cláusulas que contemplem eventos como o atual. Contratos corporativos também deverão começar a tratar do assunto. Do contrário, pode-se abrir um negócio natimorto ou meter-se em encrenca por não prestar atenção ao que está escrito.
4. De uma hora para outra, descobriu-se que é possível ser produtivo trabalhando ou estudando de casa. Senha para entronização definitiva do labor a distância e das aulas on-line? Não necessariamente, como pretendo mostrar num próximo post. Mas de sua incorporação às alternativas oferecidas por empresas, escolas e universidades, sim. Boa parte do estresse diário nas grandes cidades tem a ver com uma coincidência banal: todos acordam, saem de casa, almoçam e voltam para seus lares no mesmo horário. Daí as filas nos estabelecimentos, os congestionamentos e, claro, todos os aborrecimentos decorrentes. Mais liberalidade nos formatos de trabalho e nos currículos pode incluir, por que não, a possibilidade de que certas atividades ocorram de maneira remota. A começar pelas reuniões de rotina e as cansativas viagens de negócios, não raro no sistema bate-volta, perfeitamente substituíveis por encontros via Zoom, Teams ou qualquer outro software do tipo.
5. E como quem passa mais tempo em casa (re)descobre defeitos e potenciais do imóvel, arquitetos e decoradores agradecem.
6. Lives virarão produtos da indústria do entretenimento. E por um bom tempo. Não há como voltar com aglomerações de apresentações presenciais de uma hora para outra, ou pelo menos até que exista uma vacina para o vírus. A chamada economia da experiência vive seu maior desafio e tem respondido de maneira interessante, mas a replicação e a viabilidade econômica de apresentações assim é duvidosa.
7. E, como escreveu alguém, o homeschooling nasce morto no país. Pai nenhum vai chamar para si a responsabilidade de ensinar filhos pequenos depois da breve (e desgastante) experiência atual.
8. E, finalmente, o pêndulo ideológico deve mover-se à esquerda, novamente. Afinal, foi colocado sob prova o sistema público de saúde, uma bandeira historicamente mais associada ao chamado campo "progressista". Como qualquer liberal moderado defende, no entanto, o objetivo nunca foi o de acabar com o acesso público à saúde, pelo contrário. Ao sair de áreas não essenciais, o Estado acumula recursos justamente para investir no mais importante – saúde, educação, segurança. Duro vai ser explicar isso a uma sociedade traumatizada.
Comentários: