Uma cidade singular
Durante muito tempo, Trieste foi para mim só mais uma referência dramática da história. Desde quando, mais precisamente, Winston Churchill se referiu a ela como a fronteira sul da Cortina de Ferro – a "Iron Curtain" –, a assinalar o espaço europeu onde a liberdade se esvaía e prevalecia o dirigismo estatal. Tirando esse detalhe, a cidade dos confins do Adriático não pontuava alto na minha agenda de prioridades.
É verdade que dez anos atrás ela entrou de vez em meu radar. O marco para tanto foi a leitura deliciada de "A consciência de Zeno", escrito pelo triestino Ítalo Svevo. O livro é por muitos considerado o melhor do século passado. Quem não corrobora com tamanho galardão, diz que é, pelo menos, o mais divertido. Essa parte eu endosso plenamente. Os dramas do personagem têm como pano de fundo os parques, o calçadão da praia, as casas austeras e a Bolsa.
Desde então, passei a cercá-la cada vez mais de perto em sucessivas viagens: Veneza, Lubiana, Zagreb, Split, Graz e Verona. Está claro que a hora dela chegaria. Foi o que aconteceu nos últimos dias. Pois bem, ao cabo dessa desconcertante temporada, posso dizer que vim, vi, gostei e quero voltar. Mais do que nunca, agora sei que ela não é uma cidade como as outras. Que o digam Svevo, James Joyce, Rainer Maria Rilke e Jan Morris – todos hipotecados à magia do local.
Por uma questão de concisão e gentileza para com o leitor, destacarei apenas quatro pontos dos muitos que me chamaram a atenção:
A) O triestino é gregário e simpático. As pessoas bebem profusamente vinho branco pelas ruas, mas não vi ninguém embriagado. Ele não se vê necessariamente como italiano e está bem à vontade com seu passado de porta de entrada do império austro-húngaro. Isso se reflete nos cardápios dos restaurantes: massas e assados convivem perfeitamente com goulash, "jota" – sopa de repolho com feijão branco –, joelho de porco, chocolates, espumantes e tortas vieneses;
B) Ora, tanto a Hungria quanto a Áustria são países fechados, sem saída para o mar. Acostumamo-nos, portanto, a ver os blocos compactos de Viena e Budapeste à beira de rios. É, portanto, muito impactante ver os imensos prédios inspirados pela glória e o poder dos Habsburg embalados pela salinidade marinha. Alguns parecem autênticos bolos de noiva e é comum sacadas com portas de 3 metros de altura. Vistos do dique que avança de mar adentro, parece uma cidade fantasma;
C) O falar triestino lembra algumas vezes o português lusitano. Ouvi dizer de casos em que alguns jovens precisam estudar italiano como segunda língua para prestar concurso público. Os quiosques vendem jornais em grego, servo-croata, esloveno, alemão e romeno, além do italiano e dos idiomas preponderantes no ocidente. Mas isso dá uma ideia da diversidade. Nas amplas ruas de pedestres, a toda hora nos deparamos com vitrines retrô que parecem saídas do anos 1950;
D) Vi pelo menos uma enorme igreja ortodoxa, templos católicos e uma impressionante sinagoga. Tamanho pluralismo não significa que reine só tolerância e compreensão. A exemplo de Sarajevo – uma cidade a que se assemelha –, as diferentes tribos podem se estranhar, mas não há dúvida de que aqui residem os melhores leitores do panorama do Leste. Como não poderia deixar de ser, é ponto preferencial de chegada de refugiados na região norte.
Trieste é, portanto, páreo para Budapeste, Dubrovnik, Salônica, Belgrado, enfim, os grandes centros da Europa Central e mediterrânea. Com forte vocação mercantil, seria o posto avançado que eu consideraria doravante se tivesse que abrir uma cabeça de ponte no novo mapa da geografia humana da Europa. Trieste está assentada sobre uma turbulenta zona de fratura civilizacional. Mas isso não parece alterar sua rotina burguesa e altiva.
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