Quase Natal
Não saberia enumerar as noites de Natal que passei sozinho, longe de qualquer parente ou mesmo amigo. Mas sei que foram muitas especialmente porque me valia da data para conseguir passagens mais baratas e, na própria noite de 24 de dezembro, já dava início à tradicional viagem de fim de ano. Muitos deles, contudo, foram em terra mesmo. Não raro em plagas geladas, cheias de neve e à margem de qualquer foco de calor humano. De certa forma aliviado, assistia à confraternização dos outros, indiferente à minha sina de viajante errante. Estranho personagem, pensando bem. Será que a solidão frequente me condenou à misantropia? Ou, simplesmente, Natal para mim é todo dia? É possível, mas não saberia dizer. É certo que na minha infância não havia época mais encantadora, por mais que gostasse do São João. Pois era no final de dezembro, em Garanhuns, que a rua principal recebia brinquedos rudimentares – carrossel, barcas – ao lado das barracas de bingo, roletas e caixas de pesca que povoavam nosso imaginário.
Este 2015, de qualquer forma, assinala o décimo-quinto aniversário de um Natal que jamais esquecerei. Pois foi o último que passei com meu pai. Uma semana mais tarde, ele faleceria quando eu já estava na Nova Zelândia. Parece que tudo foi ontem. Se estivesse vivo, ele estaria se avizinhando dos 90 anos – um marco inverossímil para alguém extravagante como ele. Como sabemos, a longevidade é prerrogativa das almas sóbrias. O que não ofusca o fato de que faleceu muito cedo – sina dos muito apaixonados. Olhando em retrospectiva, estou convencido de que a ele devo um legado intangível: o gosto pelo mundo. Esse estar à vontade em todos os quadrantes da Terra – ativo que ele mais valorizava na vida –, devo a ele e só a ele. Sei que foi com sacrifícios pessoais que me permitiu viajar para o exterior há 42 anos, movimento que jamais cessou. Até na família, tem gente que defende que ele teria exagerado na dose e que isso fez de mim um adulto excessivamente independente. Alguém que tira pouco prazer do convívio humano. Será? Não creio.
O que sim pode ter acontecido foi a calcificação de um cacoete que, tendo começado profissionalmente, resvalou para a vida diária. Observar a forma como os diferentes povos comem, se vestem, pensam e reagem às manifestações naturais e espirituais, se transformou numa espécie de segunda natureza. Um exercício sócio-profissional que virou um mantra de vida. Portanto, tanto quanto celebrar as festas, me compraz ver a vida da janela, como se o mundo fosse uma imensa passarela e eu o espectador privilegiado. Nesse contexto, meus votos são muito pessoais – a todos os que começaram a me acompanhar aqui no blog esse ano – e, como não poderia deixar de ser, universais. Queria que, mesmo entre os não-cristãos, se instaurasse um momento de reflexão e recolhimento. Menos badulaques ao pé da árvore natalina e mais tolerância. Esse ano vi paredes perfuradas por bala de fuzil na porta de casas de show. Mas também vi sírios recém-chegados ao Brasil, já à frente de simpáticas lanchonetes árabes e falando um português esforçado e gentil.
Sei, outrossim, o quanto é difícil antever dias auspiciosos para os próximos anos. Sou dos que acham que o fundamentalismo consumista ressecou corações e deformou mentalidades. Nesse vale tudo que entroniza o ser a reboque do ter, tudo pode parecer válido. De par com isso, decepciona que a sociedade civil ainda não tenha se valido de seus muitos instrumentos de mobilização para, efetivamente, ocupar cada vez mais o lugar inoperante e anquilosado dos chamados governos. Esse é talvez meu maior sonho: a criação de um mundo intercultural, fortemente calcado na economia cooperativa e cada vez menos dependente da orquestração de uma classe política para ir em frente. Menos mal que, a essa altura, meus anseios dependem menos de fatores externos do que da força interior para dar forma a essa visão de mundo. Mesmo assim, sobretudo para quem envelhece, é reconfortante imaginar que deixaremos o legado de um mundo melhor e maior. Como meu saudoso pai me legou, no que dependia dele.
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