Roubo raiz, roubo Nutella

O que os desfalques em supermercados nos dizem sobre o Brasil
O Brasil de 2022 dá mostras de que passou do roubo raiz (famélico), comum na década de 1980, para o Nutella (gourmet)

Reportagem da Folha de São Paulo de 28 de abril trata do aumento dos casos de roubos em supermercados, geralmente cometidos por clientes ou funcionários. Entre os itens mais surrupiados, surpresa: poucos de primeira necessidade. Queijo, carne, bebida alcóolica, chocolate e Nutella estão entre os campeões.

Sinal de que parte da população não se conformou em abrir mão de certos luxos depois que o poder aquisitivo caiu? Provavelmente. Mas logo que li a matéria, duas crônicas de Contardo Calligaris (1948-2021) me vieram à mente.

A primeira, de 2011, falava de uma onda de saques perpetrada por populações dos subúrbios de Londres a lojas que vendiam eletrônicos e tênis esportivos. A pretexto de protestar contra a morte de um garoto negro por policiais, noite após noite iPhones, iPads, Nikes e Adidas eram levados do comércio local. Condenável? Não para Contardo, que escreveu:

"A turba que afugentou Luís 16 e Maria Antonieta em 1789 pedia pão porque estava com fome. A turba de Londres em 2011 pedia bugiganga eletrônica e roupa de marca - artigos que, aos olhos de muitos, parecem não ser de primeira necessidade. Ou seja, aparentemente, a violência de 1789 talvez fosse justificada, mas a de 2011 não é. Não penso assim. Na nossa época, as 'futilidades' são, no mínimo, tão relevantes e tão necessárias quanto era o pão em 1789 (...) Em Londres, os jovens roubaram objetos que lhes eram necessários para existir, para ser 'alguém' no mundo. Quem rouba iPads não é mais culpado do que aquele que rouba pão, porque, numa sociedade livre, em que a vida depende tanto do olhar dos outros quanto de mil calorias diárias, as pretensas 'futilidades' são gênero de primeira necessidade, parte da cesta básica" (Folha de S. Paulo, 08/09/2011).

Em outra coluna, Contardo relembrou um episódio ocorrido em lugar mais remoto, mas não menos representativo de tendência parecida. E assim o descreveu:

"Num país asiático, durante uma campanha de controle de natalidade, os camponeses mais pobres que aceitassem passar por uma vasectomia poderiam escolher entre dois prêmios: um saco de arroz ou um radinho de pilhas. Quase todos escolheram o radinho, apesar da fome. Orientar-se pelo desejo talvez fosse, para eles, o jeito mais radical de se livrar da necessidade, no sentido de não ser definido por ela" (Folha de S. Paulo, 03/07/2015).

Com alguma boa vontade, pode-se enxergar no episódio brasileiro natureza semelhante à dos casos descritos por Calligaris anos atrás. Mas como, se carnes, queijos, cerveja e Nutella não são mercadorias de consumo público, sujeitas ao "olhar dos outros"? Ora, duas décadas atrás a Unilever descobriu que donas de casa moradoras de periferias preenchiam caixas de Omo com sabão em pó barato, para que, aos olhos da vizinha, parecessem usar a marca top de linha. Por que algo semelhante não pode estar ocorrendo com os gêneros alimentícios supérfluos? E mesmo que não esteja, por que não pensar que o desejo de Nutella seja uma forma "de se livrar da necessidade" e não ser definido por ela?

O Brasil de 2022 dá mostras de que passou do roubo raiz (famélico), comum na década de 1980, para o Nutella (gourmet). E se obviamente nenhum dos dois nos serve como sociedade, ao menos sinalizam o quanto se avançou de tempos passados para cá – e de quanto se regrediu recentemente.

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