Pessoas felizes
Na última madrugada, o céu estava encoberto e os ansiados relâmpagos da aurora boreal ficaram para as próximas noites. De volta para casa depois de uma hora de caminhada a -26º, tomei um conhaque ao pé da lareira e não sei bem por que razão, passei a recapitular com Tomi Salo, meu anfitrião, alguns dos amigos que fizemos na vida. Talvez como forma de celebrar nossa própria amizade, que só brotou na idade madura, a conversa se revelou didática. Da parte dele, finlandês de autêntica linhagem, você reconhece as boas pessoas ao primeiro olhar e ele jamais se enganou a respeito. Ou quase. Mas se tem dúvidas, reforça as barreiras naturais de convívio próprias de gente reativa, como faz a média de seu povo. De minha parte, sou menos restritivo e dou crédito alto de partida a quem conheço. Depois vou subtraindo as parcelas. Se a pessoa entrar no vermelho, casso o cheque especial e decreto, sem remorso, o fim dos contatos.
Uma conclusão, contudo, assomou com nitidez. Fazendo uma panorâmica das dezenas de interlocutores de negócios (e também de outros universos de meu interesse) que fiz mundo afora, em tantas décadas de andanças entre culturas tão variadas, é patente que continua bem sucedido e feliz quem já era gente boa há 20 ou 30 anos. Isso está fora de dúvida. Digo-o porque embora não mantenha contato com eles, a Internet me permite bisbilhotar vez por outra o que é feito de alguns. Invariavelmente, estão muito bem as pessoas que, há décadas, já davam prova de ser trabalhadoras, modestas na análise de problemas – deve ser por isso que a maioria delas não está no Facebook, último reduto dos virtuosos absolutos –, gentis e disciplinadas. Nesse contexto, poderia citar indivíduos que levariam um enorme susto se soubessem que permanecem vivos em minhas lembranças.
Assim sendo, o divertido Freedson continua sendo o homem feliz que já era nos anos 1980, época em que era um "trader" típico de Manhattan, mas cujo olhar já traía, no fundo, a virtude e a compaixão. Herman Moeliana, de Jakarta, com quem não falo há 25 anos, me parecia a quintessência do cavalheiro chinês na Indonésia, sempre de olho no bem-estar dos colaboradores e integrante ativo de comitês de cidadania. Assim continua. Lawrence Lee, de Cingapura, idem. O querido Victor Contreras, de Lima, que trabalhava duro, tornou-se afinal o homem rico que queria ser um dia. Mill Cheng, de Taiwan, era excepcional e não fosse a fatalidade de um tumor no fígado, poderíamos tê-lo até hoje a alegrar o mundo. O português José Machado, de quem eu tanto gostava, continua vivo no Porto, aos 92 anos. O coreano Sung ficou milionário e hoje se dedica ao golfe, à benemerência e aos netos.
É claro que não me dei ao trabalho de percorrer com Tomi a sina daqueles que se revelaram mesquinhos e menores. Até por essa razão, risquei-os de minha lista de rastreáveis e já não me move qualquer curiosidade de saber o que é feito deles. Certo é que, não por bondade minha, lhes desejo o melhor possível. Ainda que mais não seja para que eu não receba rancores nem adube sentimentos negativos à minha volta. Mas não é por acaso que egoístas, oportunistas e preguiçosos de toda ordem se deram invariavelmente muito mal. Sina da qual não escaparam os que tentaram trilhar atalhos e fazer prevalecer seus interesses paroquiais à custa do bem maior da amizade, da concórdia e da pureza de espírito. Não faço uma exortação à pieguice, tampouco à canonização em vida de quem quer que seja. Apernas reiterei a Tomi que fazer o bem, comprovadamente, compensa e é ótimo investimento de longo prazo.
Sejamos todos um pouco melhores em 2018. E que eu tenha sorte com os lampejos da aurora boreal do norte amanhã. Felizmente ainda é mais fácil encontrar pessoas de bem do que sair de madrugada pelas pistas de Saariselkä à procura de luzes fugazes. Feliz Ano Novo.
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