Hikikomori: os cidadãos pós-corona
De Paris (França)
Nunca vou esquecer o dia em que em Sidney, na Austrália, um amigo me levou para mostrar a linda casa onde morava, não longe de Bondi Beach. A certa altura, diante da única porta fechada, ele colocou o ouvido sobre a madeira e me disse que podíamos dar uma olhada. "Vamos aproveitar que ele não está. Entrar, eu não recomendo, mas ver daqui, a gente pode ver. Você não vai esquecer da cena." Efetivamente, a experiência foi única. Em primeiro lugar, veio a pestilência. Ali se misturavam fezes de cachorro, chulé de meias encardidas, restos de comida chinesa em caixas, e cheiro de maconha. Esses eram os aromas dominantes, mas não os únicos - o decoro me impede de citar os demais. Símbolo da tolerância, do respeito à alteridade e do amor filial, o pai parecia se divertir, e quase se congratular. Os poucos amigos que o frequentavam eram da mesma referência e, pensei eu, estavam a um passo do zoológico, onde espantariam os ornitorrincos e assustariam os Diabos da Tasmânia. "Já prometi 50 dólares por uma arrumação, mas nem assim." Antes de passar ao jardim, fui ao banheiro me refrescar, para dizer pouco.
De lá para cá, vi que isso era uma constante em boa parte das casas que frequentei. Só que cresceu imensamente a quantidade de tralhas eletrônicas espalhadas. Fios, tomadas, extensões, cabos, adaptadores e fones de ouvido se misturam a farelos de salgadinhos mexicanos ensacados e latas de refrigerante jazem ao pé de meias de lã imundas. Esses hikikomori raramente frequentam as festas em família ou vão à sala de jantar se encontrar com os demais. A única coisa que os enxota do quarto é quando chega o entregador de comida ou quando cai a conexão internet por algum motivo, o que os leva a instalar roteadores reserva em desespero. Quase não saem do quarto, afastam-se do contato humano o quanto podem e, quando ele acontece, a falta do hábito lhes subtraiu a capacidade de dizer coisa com coisa. Geralmente saem para fumar um baseado e só sabem conversar sobre o mundo virtual, que lhes dá tangibilidade ao concreto. Eles só acreditarão na placa "Churrascaria" diante de seus olhos, se o celular confirmar que, efetivamente, ali existe uma churrascaria. O digital dá a chancela de tudo, e não o mundo concreto.
Pois bem, esses cidadãos estão sim preparados para mundo pós-corona. Sem querer, e sem saber, nossa geração já os vinha criando. Ninguém sabe consistentemente o que será o amanhã. Tenho quilos de jornais aqui em Paris e não conseguiria ler um centésimo do que sai na internet sobre as consequências da pandemia. Mas, convenhamos, para essa geração, a vida futura parece normal, quase desejável, senão auspiciosa. O que não é aplicável a nós, a geração anterior. Afinal, o que é uma vida sem toque, sem experimentação táctil, sem ousadia, sem beijo, sem abraço, sem cinema, sem teatro, sem estádio, sem gargalhadas? Que sentido fará acordar cedo, ganhar dinheiro, fazer planos, moderar à mesa, cuidar da saúde, planejar? Para os hikikomori, essa gente que só conhece o mundo virtual, ignora a luz do sol, não sabe sorrir, não toma banho e não transa, eis uma benção. Esses são os homens e mulheres do amanhã. Além do mais, podem até se tornar consultores... on-line, of course. Sem saber, já estávamos criando essa super casta nas nossas próprias casas. Ninguém diga que não tivemos evidências à volta.
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Comentários: 2
Bem descrito. Enfim, alguns desses "nerds“ saíram de seus habitats para fundar seus startups. Outros saem porque resta um mínimo de civilidade que lhes permite trabalhar com outros em algum emprego. Nem sempre são produtivos, muitos até destrutivos. Se o mundo, afetado por pandemias contínuas porque se comem morcegos, cobras, lagartos ou texugos mal passados precisar desses hikokomori, estamos roubados.
Artigo pecou pela falta de profundidade. Análise extremamente rasa e preconceituosa, nada mais fez que apontar o dedo e zombar de pessoas que sofrem de um problema de saúde mental real. Nenhuma análise socioeconômica, nenhuma investigação das causas desse fenômeno moderno, nenhuma entrevista... Não agregou nada. Só serviu para reforçar os conceitos pré-estabelecidos nas mentes de quem lê: justamente o oposto ao que deveria ser o jornalismo de verdade.