Especialistas e picaretas
Um fenômeno gritante no mundo contemporâneo é a sem-cerimônia com que autoridades e leigos se arvoram de entendedores de um assunto que desconheciam até a véspera. Não é de hoje que isso me chama a atenção. Sempre atentei para o jargão da economia e da medicina para nele identificar quem se arvorava de especialista em déficit previdenciário ou endocrinologia pelo simples fato de ler jornal ou bula de remédio. Nesses últimos tempos, eclodiu no Brasil uma fauna de proficientes em prisão cautelar, habeas corpus, delação premiada e dosimetria. Estrangeiros que nos visitam ficam boquiabertos ao ouvir de não-iniciados palavras que jamais poderiam esperar de um taxista canadense ou londrino. Já os estudantes, bem, desses é melhor nem falar. Em seu favor, temos o indulto da idade e o entusiasmo natural dos verdes anos.
Mas se isso nos serve de consolo, é bom atentar para que o privilégio não é exclusivo de nosso país. Pois aqui em Portugal, depois dos incêndios florestais que devastaram a região central, e cujo epicentro se propagou a partir da cidade de Pedrógão Grande, surgiu como que por encanto miríade de especialistas em fogos advindos de tempestades secas. Desde então, e já se vão mais de duas semanas, o jogo da responsabilização oportunista – ditado pelos golpes baixos da política – só se adensaram nos convidados de talk shows que falam das labaredas assassinas como se outra coisa não tivessem feito na vida até então. Pois bem, ou estamos diante de um fenômeno inusitado de assimilação de conhecimento por vias eletrônicas ou, o que é mais provável, a picaretagem campeia sempre que encontra terreno fértil.
Nesse contexto, é reconfortante encontrar pessoas que reconhecem suas limitações em avançar hipóteses com fervor de torcedores de futebol. Nelson Rodrigues já dissera que esses tempos seriam marcados pelo florescimento inexorável dos idiotas. E mais alguém acrescentou que estes vinham perdendo a vergonha e os escrúpulos. No segundo episódio que macula a vida portuguesa desses dias, a saber o roubo de material bélico de uma guarnição militar, também surgiram críticas as mais despropositadas, muito embora a negligência tenha sido para lá de suspeita. Mas fato é que todo mundo tem uma ideia pronta a respeito do incidente, quando não uma teoria conspiratória completa. Tudo isso decorre das regras que pouco a pouco o jogo político foi estabelecendo nas fímbrias da sociedade. E assim criamos um colchão de manipulados, caluniadores ou inocentes úteis.
É mister reconhecer, contudo, que mesmo no âmbito da classe política, há de se fazer uma séria clivagem entre os nossos e os portugueses, por muito que os daqui também sofram apupos e tenham sua honestidade intelectual – dentre outras – questionada. Mas dá gosto ver alguns deles discorrerem com autoridade sobre os grandes dramas geopolíticos que assolam a área do Golfo, no Oriente-Médio. Que político brasileiro poderia falar com propriedade sobre o Catar e o que ele representa no grande jogo que é travado entre Arábia Saudita, Turquia e Irã? Nenhum que eu saiba. Ao passo que aqui são muitos os que se mostram à vontade com tópicos críticos do condomínio europeu – as mortes de Helmut Kohl e Simone Weil, por exemplo –, mas também com os da África e até da América Latina. Só temo quando o tema resvala para florestas. Então só poucos resistirão à tentação do aplauso fácil.
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