Um livro para o Carnaval
Aos 19 anos, perdi um Carnaval que prometia muitas alegrias. Passara as prévias no Recife, animadíssimo, na companhia de uma jovem estudante de odontologia de Porto Alegre que lá chegara. Nosso plano era de nos vermos toda noite no Clube Português e de passar parte do dia nas ladeiras de Olinda. Pois bem, nada disso aconteceu. Isso porque na sexta-feira, eu desertei, febril e muito gripado, provavelmente devido aos excessos cometidos até então. Minha mãe me levou ao médico que diagnosticou perigo iminente de pneumonia e, cavalheirescamente, eu a liberei para passar como bem quisesse o Carnaval. Eu era um soldado morto em batalha. Não era justo que ela também colocasse a alegria em perigo por tão pouco. Nunca mais nos vimos e eu chorava a caminho de casa, triste pelo desfecho. A festa rolaria ao som do frevo e eu ficaria em casa, resignado à minha condição de convalescente, sem querer sequer ver as imagens de televisão. Isso foi há muito tempo.
Embora aliviados por saber que não teriam que se preocupar comigo, meus pais se solidarizaram à minha dor. E me liberaram para encomendar na livraria até três livros, se quisesse. Um para cada dia de festa perdido. Embora amuado, aceitei a oferta, salientando que nada, absolutamente nada, substituiria a companhia da gaúcha. Mas o que não tinha remédio, remediado estava. E foi assim que instituí meu livro de Carnaval, uma espécie de cota obrigatória que se aplicaria mesmo aos dias em que voltaria a ser protagonista, e não mais mero espectador da festa. É com esse espírito que lhes recomendo um livro que li no avião, entre o aeroporto de Guarulhos e a Europa, e que quase não me deixou dormir de tão palpitante que é. Trata-se de "Collor Presidente", do historiador Marco Antonio Villa, editado pela Record. O autor é bem conhecido por sua participação em programas de rádio e televisão em São Paulo onde brilha pelo estilo inconfundível e irritadiço, no mar de platitudes do jornalismo diário.
Por que ler esse livro é tão importante? Por cinco boas razões. A primeira delas é porque é bem escrito, apesar de abusar das notas de rodapé que poderiam ir para o fim, o que nos impediria de interromper a leitura. Mas sabemos que são cacoetes acadêmicos inelutáveis, especialmente quando o escritor é egresso da universidade e está em franca reinvenção de si mesmo. O segundo ponto é que consegue se ater disciplinadamente ao escopo do tema, resistindo à tentação de rechear as páginas com a crônica hilariante desses anos. Mesmo assim, é inevitável que o leitor ria muito em certas passagens, mormente naquelas em que se vê Collor posar de Donald Trump "avant la lettre", no centro de uma constelação de que constavam figuras como Renan Calheiros, Claudio Vieira, Cleto Falcão, Pedro Collor e o imbatível PC Farias, um sujeito que refletiu como poucos a cognição das sombras do poder brasileiro. Quem achar que o patrimonialismo ainda é passível de cura, ou é otimista ou ingênuo demais.
O terceiro ponto pelo qual você deveria comprá-lo e fazer dele seu livro desses dias decorre do retrato fidedigno que se tem do Brasil dos anos 1990. É inevitável constatar o quanto evoluímos pouco desde então – e o quanto certos pontos continuam recorrentes no nosso dia a dia, mesmo um quarto de século mais tarde: o clientelismo, o tráfico de influência, a negociata descarada e a necessidade desesperada de se criarem heróis e bodes expiatórios. O penúltimo ponto que faz da obra um achado é que você verá que, apesar dos mil e um defeitos de liderança de Collor – o voluntarismo, a vaidade, a megalomania e a prepotência –, o governo dele caiu mais pelos méritos do que pelos defeitos. Isso porque ofereceu combate frontal ao corporativismo e colocou o dedo na notória ineficiência nacional. O que não impediu Delfim Netto de alfinetá-lo com verve: "Não se trata mais de resolver o problema. Mas de defini-lo". Nunca as entranhas de Brasília ficaram tão expostas.
O quinto e último fator que faz do livro de Villa entretenimento de qualidade é que ele consegue colocar no papel um pouco da irreverência que lhe é própria. Apesar de ter sido recebido por todos os integrantes vivos da narrativa, inclusive por Fenando Collor, o historiador não recalcou em momento algum sua conhecida mordacidade. E isso dá um tempero todo especial à peça que, bem entendido, resvala o bom jornalismo. Nesse ponto, se o livro de Mario Sergio Conti – "Notícias do Planalto", publicado em 1999 – ainda é a grande obra do ocaso da Era Collor, digo sem medo de errar que o livro de Villa percorre com mais rigor a essência da operação daqueles 30 meses em que o então presidente interpretou equivocadamente os sinais de uma eleição solteira. Isolado e amargurado, pagou ele e o Brasil um preço salgado numa época em que, mal sabíamos, ainda estávamos para começar a viver o pior de nossa História, apenas 10 anos mais tarde. Sim, enquanto se está vivo, tudo pode piorar. Divirta-se!
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