Recife: o imperativo de uma visita

Confesso que fico meio escandalizado quando conheço alguém de classe média ou alta que nunca veio ao Recife. Vencida a perplexidade ao constatar que a pessoa em questão já foi três vezes a Florença, duas a Miami e uma à China, olho-a com um misto de ...
Recife: o imperativo de uma visita

Confesso que fico meio escandalizado quando conheço alguém de classe média ou alta que nunca veio ao Recife. Vencida a perplexidade ao constatar que a pessoa em questão já foi três vezes a Florença, duas a Miami e uma à China, olho-a com um misto de curiosidade e pena, como se aquela lacuna equivalesse à amputação de um membro, e menos mal que ela nem se desse conta do fato doloroso. "Do Nordeste, só conheço Fortaleza. É legal. Você já foi ao Beach Park"? Confesso então que não, que até gosto de Fortaleza, mas que nunca me apeteceu tanto um tobogã aquático, a ponto de atravessar o Brasil para cair de bunda dentro de uma piscina. Então é a vez de as pessoas me olharem com um misto de perplexidade e pena. 

Será que é um pouco de bairrismo? Pode ser. Quem está totalmente imune a ele? Aliás, não é incomum que as pessoas ditas mais internacionais tenham uma ligação meio atávica com sua terra de origem. Cada um tem uma teoria a respeito. Diz a minha mãe, que eu sou um "gato". Não, coração de mãe é benevolente, mas ela não chegaria ao ponto de dar à palavra a acepção moderna. A intenção é dizer que me afeiçoo mais aos lugares do que às pessoas, o que pode ser verdadeiro em certa medida, a depender da fase da vida. Mas no caso do Recife – e olhem que já não sou residente aqui há quase 40 anos –, acho uma pena que tantos brasileiros não se aventurem a vir conhecer esta capital pulsante de beleza, história e cultura. 

Do Recife, gosto especialmente dos bairros da Zona Norte. Casa Forte, Apipucos, Poço da Panela, Jaqueira e Parnamirim, parecem nos remeter a um passado meio aristocrático, onde não faltam árvores frondosas e discretas conversas na calçada. Quem vive ali sempre terá seu boteco favorito, muitas vezes bem escondidinho. No Norte, palpitam também os bairros ditos populares e povoados, como Casa Amarela e uns tantos morros que aqui são conhecidos como Altos, e que durante anos foram refúgio seguro contra as inundações do Capibaribe. Na Zona Norte, moram muitos dos recifenses da gema que, contrariamente ao que se pensa, preferem a vizinhança do rio à do mar. E que entretêm nas ruas dos bairros animada confraternização.  

A Zona Sul é o principal cartão-postal da cidade porque estampa mais de oito quilômetros de uma orla super povoada. Contrariamente a Salvador, que não tem uma bateria de prédios compactos diante do mar, Boa Viagem é uma Copacabana, com a diferença que os prédios são muito mais altos, tributários de uma arquitetura moderna a arrojada. Boa Viagem é o destino natural de quem vem de fora para morar. Os paulistas, que terminam amando esta cidade, enlouquecem de felicidade com o privilégio de sair da cama, colocar um short, descer no elevador, atravessar cinco metros de pista e ter diante de si quilômetros para caminhar e água boa para nadar – não em qualquer lugar nem a qualquer hora, mesmo porque tem uns bichos dentudos e indelicados que também adoram esta praia. 

Da Zona Oeste, gosto em especial da Várzea e seu verde luxuriante, que só fui conhecer mais tarde e ainda estou descobrindo. Gosto de Aldeia, mas ali já temos a fronteira com outros municípios, da mesma forma que Olinda assoma no fim da Zona Norte, e Jaboatão dos Guararapes – uma espécie de entidade administrativa meio ficcional – está ao Sul, já engolindo Candeias. Transitar por esses bairros, ouvir-lhes os diferentes sotaques e as preferências futebolísticas, é um deleite que se renova todo dia. Especialmente para quem como eu, cresceu na Boa Vista, portanto no Centro – da Cidade e do Mundo –, local que até hoje me dá a mais poderosa âncora de pertencimento que trago em mim. Nasci em Garanhuns, mas, antes de tudo, sou filho da Boa Vista recifense. 

E o que aconteceria se chegasse aqui pela primeira vez, do alto de meus 60 anos? Pois bem, acho que enlouqueceria.Ao cabo de três dias, já teria um apartamento em vista para alugar. Em uma semana, teria feito um par de velhos amigos e depois de duas, já teria arranjado uma namorada de falar mavioso e um pouco arisca, como costumam ser as pernambucanas. Em um mês, podia não estar dominando a geografia da cidade – que não é difícil –, mas pelo menos não teria de decorar quantos bairros temos na Zona Leste porque lá não temos nenhum, é só a placa prateada e reluzente do Atlântico. Mas então, vocês dirão, por que não faz isso? Ora, porque sou daqui, nunca me ausento por tempo demasiado e gosto do mundo. De mais, sou imperfeito, ainda bem. 


Mas é na sua gente, que o Recife encerra os maiores segredos. Nesta sexta-feira pela manhã, enquanto tomava água de coco bem gelada depois de uma caminhada na areia, entreouvi uma discussão acalorada. De um lado, um "personal trainer" fazia a apologia do jeito Bolsonaro de ser. De outro, um guia de turismo dito petista se inflamava, enquanto atocaiava seus clientes à saída do hotel. Os argumentos de lado a lado e o palavrório empolado (mais do que o meu) me fizeram temer pelo pior e pedi ao vendedor de coco que guardasse o facão para que ninguém fizesse uso indevido dele. Se discussões assim afloram em todo o Brasil, aqui elas são especiais. O Recife é um dos últimos bastiões da Guerra Fria. Há 30 anos naufragou o conceito de direita e esquerda. Mas aqui, ainda não. 

Se você vem a Pernambuco pela primeira vez, não se espante com a terminologia. Aqui, o que era tido como "de esquerda" antigamente, é conhecido hoje como "progressista" – algo como ter o Estado distribuindo dinheiro e gerindo empresas de fachada para pagar salários de cinco dígitos. Quem for contra isso, é considerado "fascista", uma denominação genérica para quem defende o mérito e o dever das pessoas de cuidarem de si, antes de relegar suas vidas aos cuidados do Estado, aqui chamado de Governo – para o bem ou para o mal. Esta cidade magnífica, pulsante de intelectualidade e emoção, não está imune à doença do Brasil. Aqui não se fala de segurança, saúde ou educação. Como se estivéssemos na Noruega, fala-se de racismo, misoginia e homofobia. Agenda de sueco em contexto de nigeriano. Pode?

Quando este período ficar para trás, porém, a cidade reatará com a inteligência, sua verdadeira vocação. Sempre foi assim ao longo de sua rica História.

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Sábado, 23 Novembro 2024

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