Para Marcos Cintra, formato atual da reforma tributária deve lançar país em um mar de dúvidas
Para Marcos Cintra, ex-secretário da Receita Federal e vice-presidente da FGV, a reforma tributária é necessária, inevitável e conta com alguns pontos positivos, mas ainda assim deixa enormes lacunas em aberto e arrisca lançar o país, nos próximos anos, em um mar de dúvidas. "[O projeto de lei] foi pouco assimilado, pouco discutido e pouco avaliado, e acho que surpresas vão começar a pipocar numa velocidade crescente. Vamos ter que enfrentar uma safra enorme de projetos de lei e até mesmo PECs corrigindo aspectos dela, modificando de tal forma que ela pode até ser descaracterizada", avaliou, durante o tradicional Tá na Mesa, promovido pela Federação de Entidades Empresariais do Rio Grande Sul (Federasul), nesta quarta-feira (28). "A sociedade brasileira só vai despertar para os conflitos inerentes a essa proposta a partir do momento que sentar para definir os detalhes operacionais na formulação das leis complementares. Isso está passando despercebido e eu noto quase que um descaso com relação à reforma tributária, e não concordo com essa visão de que qualquer coisa é melhor do que nada", alerta.
Segundo ele, um exemplo claro dos desafios que o novo texto pode trazer é o aumento do ICMS. "É uma consequência ou um subproduto não previsto da reforma tributária, que está levando a um aumento de carga quando toda a filosofia do projeto é que ela seria neutra do ponto de vista de carga tributária e, no nascedouro, já está gerando um aumento de carga tributária para o Brasil. Na minha avaliação, é um projeto que está sendo aprovado por meio de uma narrativa imposta à sociedade, pouca discussão, pouco debate. E nós vamos pagar um preço muito alto por isso", completa. As incertezas, ainda de acordo com Cintra, também devem gerar momentos de turbulência para o país, que já se encontra em um momento de instabilidade financeira e precisaria, mais do que nunca, de credibilidade e segurança jurídica para a atração de investimentos. "Temos um mercado de 210 milhões de pessoas, que precisaríamos explorar através de um projeto de reindustrialização. Agora, neste mar de incertezas, vamos atrasar esse projeto por no mínimo cinco ou dez anos", prognostica.
Cintra critica ainda o método de reforma tributária adotado no Brasil, pois o grupo privado SESIF, patrocinado por grandes empresas e bancos, elaborou o projeto, que foi posteriormente endossado pelo governo e apresentado à sociedade. "Não há nada ilegítimo nisso. Tenho certeza de que é um projeto bem-intencionado, mas, naturalmente, ele tem o viés dos seus patrocinadores, reconhecido até pelo responsável pelo SESIF, que disse que ele sempre passa pelo crivo dos patrocinadores. Qual deveria ser o método correto para se fazer uma reforma tributária?", questionou. "Primeiro, tem de ser iniciativa pública. Segundo, tem de ser uma iniciativa elaborada por especialistas independentes e não por grupos contratados por empresas com setores legítimos, repito, mas setoriais. Ou seja, a estratégia adotada foi aprovar um tipo de reforma tributária que, naturalmente, gera conflito. Hoje nós temos uma guerra aberta do setor de serviço contra a indústria por força dessa reforma tributária e isso atrapalha. É lógico que a narrativa vencedora foi a da indústria, o governo encantou e nós vamos ter de enfrentar. Mas esses problemas que surgirão deveriam ter sido antecipados. Tudo isso teria que ser discutido antes da aprovação da reforma tributária. Uma PEC com essa importância teria que ter minutas de lei complementares acompanhando", destacou. "O exemplo mais gritante, eu diria até quase que jocoso, é que nós estamos aprovando uma reforma tributária e não sabemos qual é a alíquota do novo imposto. Estamos adicionando 40 páginas à Constituição Federal e introduzindo mais de 50 novos conceitos tributários não pacificados pelo nosso sistema judiciário. Quantos anos vão demorar para que esses conceitos sejam minimamente pacificados através de uma jurisprudência consolidada? E como fica o funcionamento da sociedade durante esse período?", perguntou mais uma vez.
Falta de credibilidade
Cintra preocupa-se, ainda, com o fato de um dos princípios basilares da nova reforma ser a junção de tributos da União, dos estados e dos municípios em um único tributo concentrado pela União. "Grandes especialistas dizem que isso agride o pacto federativo. Outros igualmente respeitáveis dizem que não. Ou seja, assim que esse projeto for aprovado, vai para a Justiça para saber se é legal ou não. Como vamos fazer uma reforma tributária e jogar o país num processo de transição em cima de um projeto cuja existência jurídica está sendo questionada?Quer dizer, são coisas que precisariam ter sido discutidas antes", justifica. "A reforma tributária vai ser implantada plenamente a partir de 2033, ainda que a transição federativa deva demorar 50 anos. Um país como o nosso, que não consegue prever nem mesmo o próprio orçamento para o ano que vem, está prevendo uma transição por meio século.Qual é a credibilidade de uma promessa dessas?", acrescenta, reforçando que a falta de preparo na elaboração do texto deve trazer diversas consequências e turbulências no futuro próximo.
O vice-presidente da FGV constata, ainda, que o "amadorismo" com que a reforma está sendo desenvolvida deve ameaçar a atração de investimentos no país. "O setor de serviços, por exemplo, vai sofrer uma sobrecarga tributária gigantesca, que eu estimo em mais de 30%. Alguns segmentos terão incremento de carga tributária que supera 100%. Ou seja, é uma antirreforma do ponto de vista dos grandes objetivos.O que é que está sendo tratado nessa reforma tributária que coíba evasão, sonegação e a economia informal?Esse seria o caminho para reduzir carga mantendo a alíquota constante. Acredito que esse projeto está sendo aprovado a toque de caixa", reforça, lembrando que a lei foi aprovada pela Câmara em praticamente duas semanas. Cintra compara que esse foi o caminho seguido pela Índia quando fez a reforma tributária em 2017. Na época, o governo central garantiu a todas as províncias, os estados indianos, que garantiriam não só a arrecadação corrente, mas que o Governo Central afiançaria um crescimento de 7% ao ano da arrecadação dos estados, fato que não se concretizou.
A reforma ideal
Apesar das lacunas, Cintra reforça que não vê o projeto apenas negativamente. "Precisamos de uma reforma tributária. Esse projeto tem alguns pontos que a gente não pode deixar de dizer que seriam bons se fossem aprovados, como, por exemplo, uma legislação única. Ela pode ser complexa, mas é uma, diferentemente do que tínhamos antes. A introdução de crédito amplo e não crédito físico para a não-cumulatividade é um ponto positivo também. Outro ponto positivo é o princípio do destino", enumera. Mas, para o ex-secretário da Receita Federal, a reforma poderia ter sido conduzida de outra maneira – com a maior parte dos problemas tributários podendo ser resolvidos através de uma legislação infraconstitucional que, segundo ele, teria impacto mais imediato."Enquanto eu estava na Receita Federal, elaboramos um projeto de reforma do PIS-Cofins e consideramos até aprová-lo com Medida Provisória. Não precisaria nem da apresentação de um projeto de lei. Acho que, se tivéssemos buscado esses caminhos, poderíamos ser muito mais rápidos, menos disruptivos e mais eficazes", argumenta.
Outro ponto defendido por Cintra é a não-unificação do ICMS com o ISS, o ponto mais sensível da reforma tributária do ponto de vista político. "[Essa medida] gera um deslocamento de distribuição de carga, com Estados que ganham e com Estados que perdem", explica. Segundo ele, a desoneração da folha de salários também contribuiria fortemente para a melhoria da reforma, mas foi deixada de lado nesse projeto. "Do ponto de vista econômico, não do ponto de vista político, o principal impacto negativo, é a disrupção do equilíbrio que a alta carga tributária sobre o setor de serviços vai causando. A única maneira de atenuar isso seria a desoneração de folha, que poderia ser um antidoto muito importante para resolver o principal problema econômico, que é o deslocamento de carga tributária em desfavor dos setores de serviços", completa.
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